domingo, 24 de abril de 2011

Chapter II - Nayara




O estrondo repentino de uma caneca batendo em uma mesa, seguido do burburinho de conversas chegou aos ouvidos da garota, que levantou a cabeça num susto. Estivera dormindo por tempo suficiente, e agora que despertara, deparou-se com uma cena incomum.

Seguindo o olhar ao longo da extensão mesa de madeira em que acordara debruçada, viu quando cerveja foi derrubada da caneca de um homem robusto, com barba e cabelos longos, que trajava uma veste a qual fez a garota piscar os olhos e ponderar se não estava dormindo ainda.

Nayara olhou para os lados e balançou a cabeça. Parecia que ainda estava sonhando.

Estava em uma taverna com paredes de pedra maciça, que refletiam a luz das velas que bruxuleavam e iluminavam fracamente o ambiente. Varias mesas postas em filas, bancos de madeira em cada lado, preenchidas por um povo que festejava. Em um canto, um balcão se postava, onde vários banquinhos eram ocupados por sujeitos mal-encarados. Todos de costas para ela, escondidos por suas capas negras, e com os cotovelos apoiados no balcão.

Paralisada pela surpresa, Nayara continuou a observar aquela cena por muito tempo até que se dera conta do quão diferente ela também estava. Trajada em vestes que jamais vira antes. Roupas brancas, panos esvoaçantes, uma faixa na cintura.

- Já eram horas de que acordastes, jovem. – disse uma voz de repente.

Nayara ergueu os olhos

Viu uma mulher corpulenta segurando uma bandeja com canecas de cerveja sorrindo. As bochechas da mulher eram rosadas e isso combinava com seus cabelos, encaracolados e vermelhos.

- Onde eu estou? – perguntou Nayara.

A mulher a olhou de cima a baixo, e levantou uma sobrancelha.

- Em minha pousada. A mais conhecida dessa pequenina cidade. – sua voz continha um falsete, de quem estranhava a pergunta, e de quem sentia prazer em dizer “a mais conhecida dessa pequenina cidade”.

Desta vez, Nayara foi quem ergueu a sobrancelha.

- Uma... Pousada? – repetiu ela. – como cheguei aqui?

A mulher balançou a cabeça.

- Não me recordo. Quando vi pela primeira vez, já estavas a dormir nesta mesa. – a expressão de Nayara murchou. – necessitas ajuda?

Nayara levou as mãos à cabeça, passando seus dedos entre seu longo cabelo negro. Não surtia efeito. Não conseguia relacionar nenhuma das informações da mulher com a sua vida e os acontecimentos do dia anterior.

Estava confusa.

- Está perdida? – perguntou novamente a mulher.

Levando as mãos à cintura, procurando por seu celular em seus bolsos, Nayara se deu conta de que não possuía mais bolsos.

- Onde posso encontrar um telefone? – perguntou Nayara, ignorando as outras perguntas.

A mulher deu de ombros.

- O que vem a ser um telefone, gracinha? – perguntou, sorrindo, tentando disfarçar que não sabia a resposta.

Nayara não compreendeu a duvida da mulher.

- Um telefone, ora! – disse, impaciente. Não tinha tempo para brincadeiras – sabe, aquela coisinha com números e bocais, que serve pra falar com pessoas de longe?

A expressão no rosto da mulher mudou de quem não havia entendido algo para a de que acreditava que Nayara estava delirando.

- Não existe tal coisa, minha querida. Jamais ouvi falar de tal objeto. – respondeu, sincera. – tens certeza de que está bem?

Nayara a encarou.

- Onde você disse que estamos? – perguntou, dessa vez preocupada.

A mulher olhou em volta e abanou os braços.

- Esta é Samantha, a cidade dos desesperados e deprimidos. Seja bem vinda!

Nayara seguiu seu olhar a sua volta.

Correndo seus olhos pelos muitos grandalhões que estavam sentados nas mesas, falando alto, Nayara percebeu uma coisa que não havia visto antes.

Estavam todos trajando armaduras. Sua visão, a princípio turva, melhorava, e ela pode ver que nas costas dos homens havia bainhas para espadas. No chão, ao lado dos muitos pares de botas pesadas, havia vários escudos arredondados postos de lado. Os elmos em suas cabeças completavam o conjunto de trajes.

Nayara não conseguia acreditar no que via.

Um sentimento de desespero começou a subir por sua espinha, e ela não agüentou. Levantou-se depressa, empurrou a mulher gorda para o lado, quase a fazendo derrubar a bandeja, e saiu correndo em direção a porta que vira. Os homens a seguiram com o olhar quando ela atravessou a porta de entrada. Ela o fez sem olhar para trás.

Seu coração batia acelerado.

Ouviu a porta bater atrás de si, e por isso queria correr tão depressa quanto podia, mas parou assim que sentiu a luz do sol e o ar puro. O lugar onde estava, a cidade onde acordara, não se parecia em nada com sua rua, sua cidade, onde dormira na noite anterior.

Casas e prédios feitos de pedra bruta, telhados de palha, carroças de madeira. Garotos brincando com arcos e flechas. Mulheres trajadas em vestidos sujos, homens guiando cavalos. Estradas de terra vermelha. O barulho de metal chocando em metal, quando dois homens encenavam um duelo de esgrima.

- Não... Não... Onde é que eu... É um sonho... Só pode ser... – Nayara falava consigo mesma. Estava quase enlouquecendo.

Esfregou os olhos e olhou em volta novamente, na esperança de que tudo sumisse, como se tudo fosse um sonho. Mas quando reabriu os olhos, estava tudo no mesmo lugar. Não conseguia entender.

Ela era uma garota bonita, seus olhos levemente puxados e castanhos. Seus cabelos eram longos e negros, e seu rosto mostrava a quem quisesse ver uma garota que vivia feliz com a vida. Naquele momento, porem, quem olhasse para ela não veria o sorriso que ela sempre ostentava, não importava a situação. Era quase medo que sentia.

- Ei, você! – uma voz trovejou em algum lugar. Nayara levantou a cabeça.

Um homem com um manto negro de capuz, que lhe cobria o rosto, vinha descendo a rua, na direção dela acompanhado de dois homens grandes vestindo armaduras e elmos cinza. Espadas longas nas mãos.

- Você mesma. – disse o homem de manto negro.

Em instantes, Nayara disparou correndo para o lado oposto dos guardas. Não estava nem um pouco a fim de conversar com eles.

Virando em uma rua que não conhecia, ainda correndo, Nayara tentava distinguir as varias construções pelas quais passava, para encontrar um lugar para se esconder.

Então ela viu.

Uma torre de uma igreja se erguia no fim da rua em que estava agora.

Feita de pedras cinza, janelas e porta marrons, uma cruz no topo da torre que refletia o sol a quilômetros. Havia um homem parado na frente da igreja, com vestes pretas e um colete azul, segurando um bastão. Sorria e cumprimentava as pessoas que passavam.

Olhando para trás, ela viu que os homens que a perseguiam não haviam chegado naquela rua. Então acelerou o passo, e chegou aos primeiros degraus da escadaria da igreja.

- bom dia, minha cara – cumprimentou o homem, que ela percebeu ser de idade mais avançada – seja bem vinda ao templo de Zurvan.

Nayara parou a frente dele, ofegante.

Dois olhos azuis a encararam por cima de um nariz curvo, como uma águia. Um sorriso foi se formando onde ela podia distinguir a boca dele no meio da barba grisalha dele. Não tinha certeza do que deveria chamá-lo.

- Padre...? – tentou – bispo...? – o velho sorriu.

- Sou um sacerdote, filha. – respondeu ainda sorrindo.

- Sacerdote, - repetiu ela – preciso de ajuda. Abrigo, pra falar a verdade.

O velho a olhou de cima a baixo, preocupado.

- Você não é daqui, não é? – Nayara confirmou, ainda ofegante – Pois bem, ajuda é o que se encontra aqui. Vamos, entre.

Ele a levou até a porta da igreja, a abriu e entrou. Nayara olhou por cima do ombro novamente, para ver se estavam por perto, mas logo o acompanhou. Dentro da igreja, Nayara seguiu o sacerdote, que andava entre as filas de bancos. A barra do seu manto azul arrastando pelo chão de mármore brilhante.

Ela mantinha os olhos nas costas do sacerdote, enquanto caminhavam. Queria ter certeza de que estava segura. O sacerdote, porem, estava bastante tranqüilo e, ela pode ver, até sorria de vez em quando. Ela o seguiu até o altar, e então para uma porta a lateral dele, que dava em uma pequena sala com moveis e uma lareira. Ele se sentou em uma cadeira almofadada, e fez sinal para ela se sentar em outra a sua frente. Sua respiração voltava ao normal. Ficaram olhando um para o outro, até que ele falou.

- Então, do que você está fugindo? – disse, com um sorriso.

Nayara olhou para os lados, como se pensasse que alguém estivera à escuta.

- Eu não conheço. – ela respondeu baixinho.

Ele se arqueou na cadeira. Nayara pode ver os olhos azuis dele se iluminarem.

- Onde eu estou? – perguntou ela, assustada.

- Esta é uma casa sagrada. O templo de Zurvan, nosso mais generoso deus. – disse, alegre. – aqui, nenhum mal lhe será feito.

- Mas que cidade é essa? Que lugar é esse? – ela levantou as perguntas apressada.

O sacerdote olhou para ela, perfurando-a com olhos firmes. Ela se sentiu intimidada e desviou o olhar. “Pam”. O estrondo desviou a atenção deles. O sacerdote franziu uma sobrancelha. “Pam”

- Volto logo. – disse ele, saindo da sala.

Nayara continuou sentada por instantes. Examinou melhor a sala onde estava. Era uma sala comum, com prateleiras e quadros, mas ela não reconheceu nenhum deles. O silencio em que estava foi quebrado por um urro. Nayara reconheceu como pertencendo ao sacerdote. Saiu da sala correndo, apenas para presenciar uma visão terrível.

Os guardas e o homem de casaco preto que a perseguiam estavam agora dentro da igreja. Haviam encontrado-a afinal, ela concluiu.

O sacerdote estava imóvel, tendo a espada de um dos homens de armadura contra sua garganta. Ele viu pelo canto do olho quando Nayara chegou.

- Olá, minha cara. – disse o homem de capuz, no momento em que pôs os olhos nela.

A jovem paralisou.

Olhou para o sacerdote, e para a afiada lamina pressionada contra sua garganta. Nem ao menos sabia o nome dele, pensou. Voltou seu olhar para o homem de capuz, tentando ver seu rosto por baixo dele.

- Quem é você? – ela perguntou, numa tentativa de ganhar tempo – o que você quer comigo?

- Você... – o homem falou – é a resposta para tudo.

Nayara ficou na mesma. Continuou encarando-o. Estava, porém, assustada. A resposta não fazia sentido algum. Tal incoerência era o que mais lhe metia medo. Estava em um lugar desconhecido, e a primeira vista, em perigo também.

- E eu... – continuou ele – sou aquele que vai responder a tudo.

Então o homem puxou o capuz para trás, deixando a mostra seu rosto.

- Talvez não a tudo, mas ao bastante para você – completou, sorrindo amarelo.

Os olhos castanhos, como seus cabelos, iluminado pela fraca luz das velas. Suas sobrancelhas arqueadas, a expressão de alivio e ódio mesclada juntas. A boca aberta em um sorriso de satisfação e ainda assim, um pouco de medo. O homem abaixou a cabeça, e logo fez o mesmo com seu corpo inteiro.

Estava se ajoelhando.

- O nome é Getulio, Alteza. – disse ele – tens de vir comigo.

Silêncio...

- A deixe em paz, homem! – ordenou o sacerdote de sua posição cativa.

Getulio se levantou lentamente. Um breve aceno com a cabeça para aquele que segurava uma espada na garganta do sacerdote. O homem entendera. Levantou o braço com a espada, bradando alto e...

... Fora jogado longe.

Um segundo depois, o outro homem de armadura também era arremessado para trás, descrevendo um arco no ar, caindo desacordado ao lado do companheiro.

Nayara não acreditava no que via.

O sacerdote tinha o braço estendido. Olhava com fúria para os dois homens caídos. Na palma de sua mão, uma luz ia se dissipando, até que desapareceu por completa. Getulio fitou rapidamente os corpos caídos, então estendeu sua mão na direção do velho ao mesmo tempo em que ele se virava com o olhar furioso.

Um clarão tomou conta do ambiente. Nayara se jogou para o lado. Um estrondo alto irrompeu. Um grito em algum lugar... Então o silencio.

Ela se levantou e protegeu a boca com a mão por causa da poeira que fora levantada. Olhou para os lados a procura de uma alma viva. Então ouviu os passos ecoando, e do meio da poeira saiu o ancião. Ela paralisou muito surpresa pela repentina descoberta, e também porque não fazia idéia das intenções dele.

Ele a encarou, então acenou com a mão e toda a poeira desapareceu.

- Nayara, fique calma... – começou ele.

- Como você sabe meu nome? – ela explodiu em raiva e medo – quem é você?

Ele a fitou com ternura nos olhos, suspirando fracamente. Isso não a acalmou.

- Responda! – ela gritou. Ele encarou o chão, então olhou para os corpos atrás dele, e finalmente disse.

- Eu sou Matheus. – respondeu, indiferente.

Ela continuou encarando-o. O vento soprou mais forte. Isso, de alguma maneira, a impulsionou. Ela explodiu, mais uma vez, em agonia. Estava queimando por dentro. Queria respostas, e não pode mais agüentar.

- Onde eu estou? Que lugar é esse e que pessoas são essas? – disse, aos gritos, apontando para o corpo inerte de Getulio ao chão. – O que vocês querem comigo?

Matheus a encarou, então começou a andar. Passou por ela e sentou-se em um banco de madeira próximo. Ela bufava em silencio, tentando fazer a respiração voltar ao normal.

Girando os polegares, Matheus fez sinal para ela se sentar também.

- Por favor – indicou com a cabeça o banco a sua frente.

Contrariada, ela se sentou. Fitou os olhos azuis do homem cujo nome disse ser Matheus, e esperou. Para ele, o momento mais esperado havia chegado. Era hora da verdade. O inicio de tudo. O inicio da ultima esperança.

- Há muito que você precisa saber. Preste atenção, eu vou lhe contar uma historia...

“... Como nenhuma outra que já ouviu...“





L

The Book of Matheus – Chapter I – O Causador de Tempestades

Deseje o que quiser, pois o mundo servirá a teus desejos.

Ser humano que estais dentro de ti, será justo com semelhantes e inferiores.
Não julgaras precipitadamente, nem cegará teus olhos quando a verdade for difícil.
Será quem tiver de ser, nas circunstancias que lhe forem impostas.
Eis o segredo para descobrir a ti próprio.

Wes Mazda, “Os Desejos do Tempo”


Há um lugar ao norte, como dizem os viajantes, onde seus sonhos podem virar realidade. Eu me aventurei em todas as direções possíveis que há neste mundo, e nunca achei tal terra prometida. Mas talvez o lugar não esteja em nosso plano de vida. Talvez ele só exista no coração daqueles que o encontraram.
E talvez um dia, eu possa me juntar a aqueles que amo nesse lugar.
Em face de um mundo destruído, no vale dos sonhos perdidos, eu me refugiei. Fui um covarde e fui um fraco. E meu coração ansiava por uma oportunidade de remediar a situação. Por um tempo, eu não fui mais que um bêbado que era jogado de taverna em taverna, amigo dos cães abandonados, sujo e maltrapilho.
Quem diria que tempos atrás eu era temido em combate, vestia uma armadura reluzente e saia em missões para nosso rei?
Sim... Eu era temido e tinha uma armadura. Conheci toda a extensão de nosso mundo em inúmeras tarefas em que corri riscos piores que a morte.
Mas há vinte e um anos tudo isso mudou. E acaba de mudar novamente.


Dois Dias Antes
O sol se punha no horizonte, e eu me sentava à frente do lugar que eu chamara de lar pelos últimos anos. Observava aquela esfera incandescente sumir entre as montanhas a oeste como fazia todos os dias. A brisa da noite chegava pela floresta me dando arrepios, as folhas se movendo fantasmagoricamente enquanto a lua tomava seu lugar no céu.
As nuvens corriam pela imensidão azul, despedindo-se das companheiras, e cumprimentando as que chegavam. Tudo isso eu observava de um velho moinho que eu encontrara em uma de minhas viagens com as tropas do exercito que uma vez comandei. Eu vim para cá quando não tinha mais pra onde ir. E então, virou minha casa.
Aquele lugar era meu baú, e lá viviam meus tesouros.
- Pai – uma vozinha feminina chamava. Eu me virei e vi uma garotinha de dez anos correndo em minha direção, o vestido branco esvoaçando enquanto ela corria.
“Nunca parei para olhar as ondas do mar. Nunca prestei atenção na água se movimentando o suficiente para me deixar emocionar. E nunca havia amado tanto alguma coisa quanto eu amava elas.“
- Pai – repetiu ela, quando a levantei em meus braços e a abracei forte.
Ela retribui meu abraço, e então eu olhei para o rosto dela. O azul de dois olhos me encarando de volta, escondidos por fios negros que caiam pelo rosto, fazendo-a mais linda ainda. Acho que nunca havia visto algo tão bonito.
– Olhe lá, a primeira estrela no céu. Faça um pedido.
Ela fechou os pequeninos olhos e juntos as mãos, então logo os abriu de novo e sorriu para mim. Eu nem senti meus lábios sorrindo, mas sabia que eles o haviam feito, porque ela riu em seguida.
- Vamos comer, entrem. – disse outra voz feminina atrás de mim.
Eu consegui notar em suas palavras ditas que ela sorria enquanto falava. Não recordo uma vez que eu não tenha olhado para ela e ela não estivesse sorrindo.
A mulher mais bela que já encontrara na vida, que me ajudou quando eu não tinha a quem recorrer, e que agora era minha esposa. E tínhamos nossa filhinha juntos. Vivíamos aqui, escondidos do mundo, felizes e tranqüilos. Onde nada podia nos incomodar.
Ou era assim que eu pensava.
- Então, chegamos em uma hora boa. – soou uma terceira voz em algum lugar.
Eu me virei, o reflexo de tantos anos atrás funcionando perfeitamente, e encarei algo que não estava ali antes. Não me surpreendi, e não me surpreendeu também o fato de eu não ter me surpreendido quando os vi.
Meu coração doeu.
Oito pessoas, aparentemente homens devido as armaduras que vestiam, estavam parados na entrada da floresta, olhando para onde estávamos eu e minha família. As espadas penduradas nas bainhas das cinturas, as mãos retas paralelas ao corpo, a insígnia dourada destacando-se do branco no peito de cada um. Os elmos ainda com a mesma expressão vazia que durava havia décadas, ocultando o rosto daqueles soldados que haviam vindo perturbar-me em meu exílio.
Eu jamais saberia quem eram eles.
- Vá para dentro. – eu sussurrei para Mila, estendendo nossa pequena Dessa para seus braços. Ela a segurou e entrou, o rosto serio, pois ela sabia quem eram eles, e tinha certa idéia do que iria acontecer.
Virei para encará-los, desejando que em minha mão estivesse minha antiga espada, porque no fundo eu sabia que iria precisar dela. Não me agradava a idéia de ela repousar coberta de teias de aranhas embaixo de minha cama, pela primeira vez em anos.
Sem escolha, fui ao encontro dos soldados.
- você é com certeza um homem difícil de ser achado. – disse um deles, postando-se a frente. Sua armadura era diferente das outras, eu via agora. Havia ombreiras maiores e um pano vermelho estava envolto logo abaixo de seu ombro direito.
Isso o fazia líder daquela pequena tropa.
- infelizmente, não o suficiente – respondi, fechando meus punhos, quase delirando que sentia o cabo de minha espada entre os dedos. Era o medo e a raiva tomando conta de mim.
O homem riu quando falei, e deu mais um passo a frente.
- não me reconhece? - perguntou com desdém, aparentemente esquecendo-se do fato de que ainda estava vestindo o elmo. – não reconhece... minha voz?
- não – eu respondi, firme. Mas de fato, sua voz me era estranhamente familiar. – porque estão aqui?
- é tolo seu disfarce, Matheus – meu coração acelerou quando eu ouvi meu próprio nome sendo falado por aquela voz. Eu conhecia aquela pessoa... – pensa que não sabemos o que você é, quando na verdade é por isso que estamos aqui.
- eu sou apenas um homem de família que cultiva sua própria comida. Vieram ao lugar errado, soldados. O Império não tem relação com esse lugar. – eu falei, torcendo para que não percebessem a parcela de mentira em minhas palavras. Eu me passara facilmente por camponês aos olhos do Império por anos, não poderia ser agora que meu disfarce cairia.
O homem a minha frente riu alto. Uma gargalhada como um latido, rouca e doentia. E então... Ele levou as mãos ao alto, e puxou seu elmo para cima, o som da risada desaparecendo. E embaixo daquele elmo, estava um rosto que eu não via há muito tempo.
Cabelos curtos e negros, assim como as duas sobrancelhas. Olhos castanhos e perfurantes, o nariz adunco respirando pesadamente, enquanto a boca estava aberta em um sorriso sarcástico, como se ele estivesse esperando por aquele momento havia muito tempo. Seu queixo apontando para baixo, como o cume de um triângulo, sustentando aquele sorriso.
- Matt... – a palavras escapou por entre meus dentes, e eu não pude conter minha insatisfação em pronunciá-las. Há muito tempo eu jurei matá-lo quando nos encontrássemos novamente.
- fico feliz que se lembre de mim, Matheus. – ele respondeu, com desdém.
- o que você quer? – eu precisava ganhar tempo, eles só poderiam estar atrás de uma coisa. Não haveria outro motivo pelo qual Andrei o mandaria atrás de mim. E eles já haviam visto minha família, isso as colocava em perigo maior ainda.
Ele olhou para o moinho, cerrando os olhos para enxergar melhor, e demorou alguns segundos para responder.
- precisamos de você de volta. – sua voz soou como se ele não quisesse dizer aquilo. Eu podia entender o porquê. – Andrei tem alguns planos novos, e ele precisa de um comandante como nenhum outro.
Na verdade, eu me senti muito mais tranqüilo com essa noticia. Meu coração aliviou, e eu voltei a respirar normalmente. Eles estarem aqui por mim significava que minha família estava a salvo, ao menos por enquanto. Por ora, a necessidade de minha espada em mãos não era tão prioritária.
- esclareça – eu pedi, ainda tentando ganhar tempo.
Matt bufou suavemente, e começou a falar com desgosto. Era evidente que a idéia de me quererem de volta não lhe agradava.
- você se escondeu por muito tempo, Matheus, mas nos nunca esquecemos. E agora, precisamos de você.
- Marlon não pode dar conta disso? – eu me arrepiei por tocar no nome de um velho amigo após tanto tempo em que eu quis esquecer o passado.
- o comandante Marlon esta sendo necessário em outro lugar – ele respondeu, desinteressado. Não lhe agradava o fato de ter que responder a minhas perguntas. Andrei sempre soube como irritar as pessoas, e esse era o modo de irritá-lo. – vamos lá, homem, quanto tempo ainda teremos que fingir que você tem alguma escolha?
Meu tempo havia acabado. Eu teria de ir com eles, se não quisesse ver minha mulher sendo assassinada em minha frente e minha filha sendo levada para longe. Mas ainda assim não era tão fácil, abandonar uma vida e repentinamente voltar para ela. Ainda mais uma vida como a minha, onde tudo que presenciei foi tristeza, morte e destruição.
Eu fitei o chão, pensativo, porque ainda haviam coisas a ser consideradas. Matt parecia que podia ver as engrenagens em meu cérebro trabalhando, por trás da expressão em meu rosto, e percebeu que eu poderia (e estava) planejando algo.
- por favor, homem, seja razoável. – ele disse, cansado. Então se virou para os soldados que estavam parados, imóveis, aguardando um momento como esse. – entrem e tragam a mulher.
Dois deles prontamente desembainharam suas espadas, com um zunido de arrepiar a espinha, e marcharam pesadamente em direção a porta do moinho, e foi como se eu pudesse ver a expressão de cada um deles através daquele elmo branco.
- PAREM – minha voz ecoou sem meu comando. O medo e a raiva tomando conta de minhas ações, fazendo coisas impensadas, porem necessárias. Minha respiração ficou pesada novamente.
Matt enrijeceu. Olhava para mim com um sorriso sarcástico no canto da boca, esperando que eu apenas me mexesse, e então ele mandaria que os soldados cortassem minha cabeça, assassinando um inimigo antigo e pondo fim a sua inquietação. Mas eu não facilitei a situação.
- eu vou com vocês – eu disse. As palavras mais difíceis dos últimos vinte anos. E eu as disse. – eu vou com você, está bem?
Os dois soldados encaravam Matt, aguardando novas instruções, esperando pacientemente. Irritado como se tivesse sido privado do maior prazer de sua vida, ele ordenou que os dois soldados voltassem à formação.
- Muito bem, pegue suas coisas. – ele disse a mim, serio – você tem três minutos.
Dez minutos mais tarde, estávamos os nove em cavalos, em direção a capital do Império. Minha ultima vida fora deixada para trás, protegida apenas por pegadas no barro e lembranças felizes.
Assim eu pensava. Eu estava enganado.
A estrada estava enlameada, embora não tivesse chovido nos últimos dois dias, e cada passo dos cavalos respingava lama em nossas calças. Tortuosa, a estrada me distanciava a cada segundo da vida que me acostumara a ter, e me aproximava cada vez mais da vida onde cada dia era uma luta, cada dia era uma batalha a ser ganha, para poder sobreviver. Para poder lutar no próximo dia que viesse.
E meu maior pecado, era gostar dessa vida.
Ao balanço do galope, eu observei a minha volta, e lembranças vieram a minha mente. O cavalo de Matt ia á frente, exatamente como eu fazia, e a formação de duas filas paralelas era impecável. O tempo poderia ser mil anos a frente, mas eu ainda preferiria usar um cavalo para andar por estas terras. Nunca um amigo será tão fiel quanto um cavalo, e nunca será tão confortável sua viagem senão em cima de uma sela. Dizem que fortes guerreiros mortos voltam como grandes cavalos. Eles saberão o que nos aguarda, e nos protegerão.
Matt olhou para trás, por cima do ombro, diretamente para mim. Então puxou as rédeas de seu cavalo e saiu da formação. Eu observei-o contornar os outros soldados até que ele se postou ao meu lado, galopando junto de mim.
- eu tenho que lhe passar as informações necessárias, Matheus – ele disse, olhando para frente, sem me encarar.
Eu fiz o mesmo.
- me diga, então, quais as regiões que vamos queimar e pilhar, quais famílias assassinar, apenas para proteger a mentira de sempre – eu disse, e minha língua estalou como um chicote, minhas palavras o atingindo como laminas quentes.
Seus olhos faiscaram em ódio.
- você devia tomar mais cuidado com o que diz, Matheus – ele respondeu, sorrindo, imaginando que eu não pudesse ver a expressão raiva e sede por meu sangue embaixo daquele sorriso. – você ainda não é tão importante a ponto de rir em nossas faces a sua descarada ironia.
Que assim seja, ficarei calado o resto da viagem.
- mas se deseja tanto saber... – eu o encarei -... Temos um destino neste exato momento. E eu acredito que você vai ficar feliz em rever os velhos rostos conhecidos que o aguardam lá.
Isso, de todas as coisas que poderia significar, nenhuma me agradava.
- qual nosso objetivo? Para que precisam de mim, após tantos anos liderando sem minha presença, o que me fez tão necessário agora? – eu perguntei, a duvida martelando em minha cabeça
- vamos dizer – a excitação em sua voz estava tão aparente, que eu não pude deixar de pensar se ele queria que eu soubesse que estava feliz ao dizer isso, ou simplesmente se esquecera de manter o disfarce. – que finalmente, seremos unidos em um só. Todo o Império, governado por apenas um líder, um imperador. – então ele se virou para mim e eu vi seus olhos brilharem – poderia imaginar isso?
“Toda a imensidão de Burlesque, unida sob uma única bandeira. Não mais aquela disputa, aquela ganância tomando cada decisão, não mais batalhas entre nossos companheiros, apenas um único país sob um único governante. Um mundo de paz afinal.”
- e deixe-me ver... Quem seria tal governante? – minha pergunta interrompeu seu devaneio, a ponto dele emudecer e demorar a responder.
- você saberá em tempo. – falou ele, misterioso, se recompondo.
- seria Andrei? – perguntei, provocando-o.
- cale-se – ele respondeu, em um sussurro.
- por ele, por suas ordens, você acredita que podem mudar algo?
- cale-se – ele repetiu, um pouco mais alto e agora, com uma ponta de raiva.
- é ele o grande arquiteto desse plano? Aquele que acredita poder controlar um novo mundo, a partir das cinzas de outro? – minha voz já se elevara o suficiente, eu estava quase gritando.
O enraiveci a ponto de ele gritar também, eu tinha certeza. Mas ele não o fez. Apenas virou seu rosto em minha direção, lentamente, e disse com calma, entre os dentes:
- que bom que sua mente está em “quem”, ao invés de “como”.
E com essa resposta enigmática, eu me silenciei. Já ouvira o bastante, e não descobriria mais com aquela tática. Deixei o som do trotar dos cavalos encherem meus ouvidos, desligando-me de tudo ao meu redor, e eu me refugiei na lembrança de minha família, em casa. A lembrança feliz unida com a esperança de que estivessem bem, eu fiquei por segundos que pareceram anos, apenas imaginando.
Então eu me virei, olhei por cima do meu ombro, e não havia força na natureza, ou em qualquer outro lugar, que explicasse por que eu fiz aquilo naquele momento.
- senhor, preste atenção na estrada – disse o soldado atrás de mim, a voz abafada por baixo daquele elmo, dois olhos me observando entre os espaços das viseiras. A voz veio segura e firme, mas eu continuei olhando para ele, e então levantei meus olhos para o céu. E foi lá que eu vi.
O céu estava envolto em fumaça negra, que subia por trás das arvores para o alto, bruxuleando para os lados, como se o vento a abanasse. Os pássaros desorientados pelo vapor enegrecido e quente daquela massa gasosa invadindo suas pequenas narinas. Aquela monstruosidade se erguendo ao céu, até que se misturasse com as nuvens, e formasse nuvens negras então.
E, eu sabia, aquilo só poderia vir de um lugar. Tanto pela origem da fumaça, quanto pelo fato de que conhecia aquela região como a palma de minha mão, só havia um lugar que poderia estar queimando daquela maneira.
A lembrança de minha família segura em casa fora posta a prova de ser apenas uma lembrança.
- senhor, preste atenção na estrada. – disse o soldado, apontando uma mão com uma luva de metal para algum lugar a frente dele, mas eu o ignorei. E notei que sua mão tremia.
Havia um sentimento crescendo dentro de mim naquele momento, e eu estava com medo de descobrir o que era. Eu não o sentia há mais de vinte anos, e agora eu o estava controlando novamente. Ele me fez perceber que a espada do soldado estava ao alcance de minha mão, e então ele me fez arrancá-la da bainha, com um zunido estridente.
Eu vi o brilho da lamina antes do sangue encharcá-la, quando eu atravessei a espada pela garganta dele. Eu ouvi gritos e relinchos, e pulei da minha sela, no mesmo instante que os outros soldados. Mas a vantagem era minha.
O primeiro avançou com veracidade, a espada girando acima de sua cabeça, e no momento que tentou abaixá-la, eu atravessei seu estomago com a espada que eu estava segurando. O rosto dele se contraiu e ele caiu para o lado.
Matt gritou algo, mas eu não ouvi. A fúria dentro de mim falava mais alto.
Outros dois soldados saltaram a minha frente, duas laminas cortando o ar em minha direção. Uma delas eu consegui aparar com a espada, mas a outro deslizou pelo meu ombro até a altura do meu cotovelo, e eu senti minha pele se abrir. O primeiro caiu quando eu acertei lhe o cabo na parte da frente do capacete, e o segundo eu matei decapitando-o, após desarmá-lo com um floreio da espada.
Por um segundo, eu fiquei parado. Não avancei nem retrocedi. Levantei a cabeça, e lá estava Matt, observando-me dizimar sua tropa, segurando seu elmo embaixo do braço, ostentando um sorriso maléfico no rosto. Meu coração ardeu ainda mais em fúria.
- Por quê? – eu gritei para ele, as lagrimas escorrendo pelo meu rosto.
Ele respondeu, e eu ouvi aquelas palavras com som de trovões.
- precisamos de você, e não há futuro para essa tarefa. – então ele vestiu o elmo lentamente, e sua voz ecoou novamente por baixo dele – não era para você descobrir desta maneira.
- e o que você achou que eu faria então? – eu gritei em retorno, não acreditando nas palavras que ouvia.
- vou levar você, Matheus. Foram minhas ordens. – ele falou. Dessa vez, surpreendentemente, ele foi gentil, como um amigo que lhe precisa contar que se atrasara por um motivo, ou que não conseguiu lhe fazer um favor. Mas era inútil.
- venha me pegar! – retruquei, entre os dentes.
Ele olhou para cima, então desceu do cavalo. Puxou sua espada da cintura lentamente, silenciando qualquer barulho. E com isso, eu ouvi os passos atrás de mim.
Girei o cabo da espada entre meus dedos, fazendo com que a lamina fosse apontada para trás de mim, e apenas segurei firme ela, até que eu senti que ela atravessava a carne, a armadura, e fazia quem quer estivesse ali, parar de caminhar. Um grunhido de dor depois, e eu puxei a espada de volta. O corpo tombou ao chão, e eu não me virei para ver.
Era apenas mais um corpo onde eu descontei minha sede de vingança.
Dei dois passos para frente, me afastando daquela pilha de corpos, surdo para os relinchos contínuos ao meu redor. A uma curta distancia, Matt andava em minha direção, os dois soldados restantes ao seu lado. Ele fez sinal, e eles começaram a correr. Então, eu também corri.
Eu tinha de raciocinar rápido, então atirei a espada que eu tinha em direção ao soldado a esquerda. Ela perfurou o peito dele, espirrando sangue, e ele foi ao chão. O outro soldado se adiantou em relação a Matt, e eu o esperei.
Duas foram as vezes que a espada dele cortou o ar, e nessas duas vezes ele não atingiu nada. Na terceira tentativa, eu segurei a lamina com a mão, quase sentindo meus dedos se soltarem. O sangue escorreu pelo meu punho, mas eu segurei firme a espada. Então eu chutei a panturrilha dele, e ele caiu. Puxei a espada dele, e a enterrei milimetricamente em seu coração, como um prego sendo batido por um martelo. Ele estava morto enfim.
E pela segunda vez eu senti minhas costas se abrindo quando o metal deslizou por elas.
Matt já estava perto o suficiente de mim para acertar o golpe, mas felizmente, ele errou. Minha camisa e meu colete de lã rasgaram e o sangue os ensopou. Ficava difícil erguer os braços com aquele ferimento.
Mas agora, éramos somente eu e ele, e a fumaça ainda estava no céu.
As duas espadas se encontraram no ar, entre um ranger de doer os ouvidos, e causando pequenas faíscas. Nós mantivemos aquela disputa por alguns minutos, nos quais nenhum obteve vantagem sobre o outro. Mas meu braço estava começando a cansar.
- por quê? – eu perguntei novamente, esforçando-me para não diminuir a pressão na espada – por que você veio? Depois de tantos anos, por que agora?
Então ele simplesmente aproximou seu pé esquerdo do direito, e enrijeceu os braços. Minha espada descreveu um circulo entre nós e foi jogada longe.
“Meu erro foi tirar minha mente da luta e pensar em minha família. Quis tanto vingá-las, quis tanto matá-lo, que podia até mesmo sentir o gosto em minha boca. E agora eu havia falhado.“
Ele tocou a minha garganta com a ponta da espada, eu senti o gume dela perfurando minha carne. Eu não pude fazer nada a não ser observar a extensão daquela lamina prateada até aquela luva de garras. E então ele levou sua outra mão a cabeça, e puxou o elmo, deixando mais uma vez seu rosto a mostra.
Ele não estava sorrindo, nem estava comemorando. Pelo contrario, estava serio e melancólico. Eu o encarei, então repentinamente ele tirou a ponta da espada de minha garganta e a guardou na bainha, suspirando. Eu o observei, sem entender.
- Minhas ordens foram para capturá-lo vivo. – ele disse, pensativo – eu tentei.
Mas aquelas palavras eram boas demais para serem verdadeiras.
- então é isso? Vai me deixar aqui, de repente, após tudo isso? – aquela onde de fúria ainda residia em meu corpo. Eu ainda queria vingança.
- eu não ordenei que as matassem, entenda isso. – ele tentou explicar.
- você apenas não segurou a tocha e a espada. – retruquei, e o gosto de cinzas desceu minha garganta. Parecia que a minha volta o ar estava sendo queimado também – mas fez todo o resto.
Minhas palavras ficaram, e o silencio se seguiu. Ele não disse mais nada então. Apenas me encarou, e se virou em direção ao seu cavalo. Eu me perguntei se devia mesmo me jogar para alcançar a espada caída a poucos metros de mim, e enterrá-la nas suas costas, sentir suas costelas sendo quebradas pelo metal, o sangue quente jorrando em mim, um banho sangrento.
Mas eu não o fiz. Por algum motivo, eu não o fiz.
- torça para que não nos encontremos novamente, na próxima não terei tanta misericórdia – ele falou, de cima de seu cavalo, vestindo novamente seu elmo branco – volte para casa, há chances de que alguém ainda esteja lá... Vivo!
A última palavra dele foi como um raio de luz após uma noite de escuridão eterna. Eu me senti revigorado, e um calor foi tomando conta de mim ao passo que Matt se afastava pela estrada enlameada com seu cavalo, o trotar silenciando lentamente, até que desapareceu por completo.
Naquele momento, eu mesmo estava coberto de barro. E de sangue.
Num salto, agarrei uma das espadas que estavam pelo chão, e montei em um cavalo. A todo galope, eu cavalguei de volta para minha casa, a esperança iluminando meu caminho e a sorte guiando meu animal. O caminho foi mais tortuoso que o de ida, já que as expectativas não poderiam nem ao menos ser comparadas.
Eu percorri a extensão daquela estrada enlameada, e então cruzei o pequeno bosque que me separava do moinho. Correndo como a chuva, vindo de lugar nenhum, a fumaça despontando acima das arvores como nuvem negra que se aglomera... Não fazia sentido correr em sua direção, já que ela aparentava vir ao meu encontro.
Perto o suficiente, eu saltei do cavalo para o chão e corri. Corri o máximo que pude, mas eu cheguei tarde demais. O que eu vi deixou-me de joelhos. E ajoelhado eu continuei, tentando não acreditar no que via, e ao mesmo tempo, sabendo que o odor do incêndio chegava as minhas narinas era real, tão real quanto qualquer outra coisa.
“Alguém ainda esteja... vivo.“
A frase veio à mente de um modo que eu não acreditei. Uma pequena chama cresceu dentro de mim novamente. Era a esperança.
Mas foi apenas uma ilusão.
Eu andei em círculos ao redor do moinho destruído, aumentando o perímetro a cada volta. Não havia ninguém, num raio grande demais para se poderem limpar rastros. Não havia ninguém. Nem mesmo cadáveres. Nem mesmo os corpos de minha família. E era isso que ainda estava me mantendo firme.
Elas poderiam não estar ali. Elas poderiam ter sido levadas. Poderiam ainda estar vivas.
O que era madeira havia virado carvão, e se partia quando eu pisava. As pedras, já negras, agora estavam torradas, e a maior parte da estrutura estava danificada. Se não fosse pelo corrimão, jamais acharia a escada, e jamais localizaria meu quarto.
Nele, eu encontrei trapos um cobertor, algumas facas escurecidas, uma pequena barra de ferro, e pedaços de corda. Carregando tudo embaixo do braço, eu fui a procura de minha cama, ou do que sobrara dela.
E lá estava, minha espada. Coberta de fuligem, embaixo de varias pedras e pedaços de ferro. Intacta. Intacta... A bainha estava um pouco suja, mas a fivela fora preservada, e ela prendeu perfeitamente em meu cinto. Quando eu deixei para trás a construção incendiada, a espada balançava em minha cintura.
Eu precisava agora traçar uma rota até a capital. Tessa fora provavelmente levada até Andrei, como uma apólice de seguro para me manter na coleira. Eu devia saber... Dentro de três dias, com sorte, ambos ela e Matt chegariam à capital, e então Andrei saberia que eu havia escapado, e aí sim elas realmente estariam em perigo.
Repentinamente, após todo o silencio em que havia mergulhado, o som de passos chegou aos meus ouvidos. Era fácil de reconhecer tal som, pois o único barulho desde que eu chegara fora o crepitar do restante das chamas terminando de destruir meu lar. E esse som havia cessado há muito.
- então você pensou, pensou e acabou por deduzir o obvio? – alguém falou.
Eu me virei no reflexo, sem nem mesmo ouvir o tinido do metal sendo puxado da bainha, e segurei minha espada firme em direção ao dono da voz. Então eu relaxei meu braço quando vi quem era.
- Wes... – respondi – sempre no lugar errado, na hora errada. E com a ironia inapropriada.
Minha voz soou impaciente, e provavelmente com raiva. O velho apenas sorriu entre sua barba longa e branca.
- de onde você saiu? – eu perguntei, cauteloso.
Ele deu de ombros.
- De um lugar entre aqui e ali. – então ergueu os olhos para o céu - se olhasse para cima, teria visto que não há abutres no céu. Isso teria lhe poupado a caminhada em círculos.
Eu me virei, e encarei aquele ancião vestido em cinza, usando um manto verde-escuro sobre os ombros, onde escorriam seus longos cabelos brancos e cinzas até quase sua cintura. Ele estava parado, sustentando seu peso igualmente em cada pé, colocando sua mão direita a cintura, e com a esquerda segurando um longo bastão de madeira paralelo, apoiado no chão.
- você estava aí o tempo todo? – eu perguntei, descrente.
- há algum tempo, sim – ele respondeu tranquilamente, como se não houvesse nada de errado em apenas observar varias pessoas ateando fogo em algum lugar.
- e não fez nada? Nada para impedir?
- o que eu poderia ter feito, que você não acabou de fazer com os soldados que estavam levando-o? – ele deu de ombros, novamente.
E ele apontou com a mão para alem das arvores da floresta, onde eu vi vários pontos negros no céu, sobrevoando o lugar onde eu sabia que havia vários corpos ainda frescos para serem devorados por aves carniceiras.
Mas eu estava sem tempo para conversas sem sentido.
- o que você quer? – eu perguntei, virando-lhe as costas para estender um pedaço do cobertor no chão, no intuito de construir algum tipo de saco de viagem.
Ele demorou a responder, e usou esse tempo para se aproximar. Quando ele falou, ele estava ao meu lado. Eu ouvi suas palavras atentamente, mas eu não confiava totalmente nelas.
- eu quero ajudar você, Matheus. A recuperar sua família, e então você me ajudará com outro pequeno favor.
Eu ponderei sobre tal proposta. Wes sempre fora misterioso, mas dificilmente era um mentiroso. Sei que o império nunca o tentaria com qualquer proposta, então era praticamente impossível que estivesse tentando me enganar. Mas confiar em alguém era algo que eu não podia me dar ao luxo no momento.
- está bom demais para ser verdade. – eu retruquei, indiferente – o que você realmente quer?
Sua resposta foi rápida e breve.
- o mesmo que você – ele bradou com energia, sorrindo – você sempre quis o Império destruído, eu quero o Império destruído. Vamos nos ajudar e darmos cabo do serviço o mais rápido possível.
A minha também.
- Há vinte anos que tentam derrubá-lo, e o mais perto que alguém já chegou de romper com o controle deles foi quando La Purga ocorreu, e no fim, todos aqueles feiticeiros foram massacrados.
- mas você deve ter ouvido que a Resistência tem se fortalecido, não? – ele perguntou, levantando uma sobrancelha. – um pequeno boato aqui e ali... não?
- sim, eu soube – a Resistência... Os únicos loucos o suficiente para declarar guerra aberta contra a tirania. Os únicos que ainda lutam por nos. – mas eu ainda creio que vão perder.
- pois a única coisa que eles precisam, está finalmente ao alcance deles. A arma que vai liderá-los a vitoria, eu a encontrei.
Eu me virei e o encarei. Do que ele poderia estar falando? Eu me aproximei com passos calmos, a espada ainda firme em minha mão. Eu olhei dentro daqueles olhos azuis, e eu não consegui ver nada. Não havia sinais de mentira, não havia sinais de verdade.
Mas o bom e velho instinto me dizia que ele tinha um ponto.
- que arma é essa? – eu sussurrei, imaginando se realmente havia alguém que iria escutar.
Ele levantou novamente a sobrancelha, e ele pareceu compreender algo. Talvez tivesse se dado conta que havia fisgado meu interesse. Se havia um modo da Resistência vencer, e eu pudesse ajudar, eu o faria. Nada me daria mais prazer do que ver Jones, Alexander, Andrei e Alexandro mortos.
Mas primeiro, eu preciso salvar minha família.
- algo que eles estavam esperando a muito tempo. Algo que eu estive procurando por muito tempo, até que chegou a hora dela ser revelada.
- do que esta falando?
- a herdeira, Matheus. – ele bradou – a filha de Frederic.
“- a filha de Frederic?”
As palavras fugiram do meu alcance, eu não sabia o que dizer.
Frederic possuía de fato uma filha, mas Halana desaparecera com a criança há muito tempo atrás. Eu não saberia dizer o que houve com ela, mas se ela sobreviveu, talvez ficasse tudo mais fácil agora.
- você a encontrou mesmo? – eu perguntei, minha voz estava quase sumindo – onde ela estava?
Ele sorriu, presunçoso e deu um passo para trás.
- não posso lhe contar, a não ser que me ajude.
A velha chantagem. Nada melhor que isso para forçar alguém a cooperar. Mas eu não tinha nada a perder indo com ele. Ele poderia me ajudar a chegar a tempo na capital, e a localizar minha família. Ele poderia me ajudar.
E ainda, se o que ele disse for verdade, ainda poderiam obter triunfo com a resistência.
- eu vou com você, - finalmente eu concordei. – eu o ajudarei, e então você me ajudará.
Ele acenou com a cabeça, um sorriso no canto da boca, a mente em algum lugar em que eu jamais visitarei, nem mesmo em sonhos. Sonhos agora eram nada mais que lembranças, assim como a lembrança em minha mente de uma pequena criança e uma linda mulher acenando para longe enquanto eu me distanciava a cavalo pela estrada enlameada.
Talvez, esse fosse o fim da historia da minha vida feliz e tranqüila, ao lado delas. Talvez fosse o fim da era onde eu não tinha que matar para sobreviver. Talvez essa história tivesse de fato chegado ao final. Mas na vida, cada fim é um novo começo. E esse novo começo, eu fazia questão de dar inicio pessoalmente.
Wes andou alguns passos, então eu prendi o trapo de cobertor amarrada com um pedaço de corda, em uma mala improvisada, e o segui. Ele estava indo em direção a floresta, e suas intenções eu não compartilhava, mas havia algo que nos dois desejávamos, e isso me deixava tranqüilo.
- Finalmente, Matheus – ele disse, de repente, sem se virar. A emoção competentemente disfarçada em sua voz, mas eu a notei. – está na hora de fazermos nossa parte nessa história.
E então ele andou até desaparecer entre as arvores, como se nunca houvesse sequer passado por ali alguma vez. Eu o segui, até que a escuridão das folhas que balançavam me engoliu também.



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