segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Eyes of Green
free me with those green eyes of you
then sought to live, and to die too
shed a tear, 'cause for you
rises the sun, and so rises for me too
on thy beat, a delighted eye of green
thus so beauty as I never seen
shinin' the wildness lonely face
in this maid of endless grace
Chapter VI - Men of Good Fortune
Seus olhos
piscaram e se abriram.
Ele levantou
da areia manchada de sangue e segurou firme sua arma. Tentou correr, mas alguém
lhe segurou. Quatro homens de verde passaram na sua frente, e estrondos depois,
dois deles eram jogados ao chão, para nunca mais se levantarem.
Os enormes
barcos escuros atracavam na areia, as rampas desciam, soldados desembarcavam.
Muitos iam rastejando até algum lugar onde se escondiam. Pessoas gritavam,
tiros ecoavam, corpos caídos no chão eram pisoteados, e explosões eclodiam ao
redor.
Tentou se
refugiar atrás dos destroços de uma parede, mas ainda assim tiros passavam
próximos de seu corpo. Soldados corriam e tentavam se proteger. O jovem cadete
ao seu lado era atingido e caia no chão sangrando. Uma granada era arremessada
na sua direção. Dois segundos depois, ela explodia e um clarão tomava conta de
sua vista.
Suando, Jude
acordou ofegante.
O dia
amanhecera cinzento, como se fosse noite de inverno. Não estava frio, mas
estava quase escuro. O vento não fazia barulho, mas castigava as folhas da
arvores cruelmente. Se tivessem uma fogueira, as chamas estariam bruxuleando.
Jude
continuou sentado onde despertara, apenas observando ao seu redor enquanto
Phillip e Cínthia ainda repousavam. Os pesadelos de antigamente haviam voltado.
Ele não recuperara o sono após isso. Depois, quando Phillip e Cínthia
acordaram, os três recomeçaram a andar.
Seguindo por
uma estrada feita de pequenas pedras, eles caminharam por horas, novamente. A
paisagem quase não mudava, mantendo sempre o horizonte ao fim de uma longa e
lisa extensão de grama verde a esquerda deles. A direita erguia se uma enorme elevação
de terra, uma colina verde, com arvores no topo. Parecia a eles que a circundavam,
seguindo aquela estreita estrada.
Com os pés
doloridos, os corpos cansados, eles concordaram silenciosamente em descansar,
sem uma palavra sequer. Saíram da estrada e se sentaram alguns metros acima na
colina. A grama verde macia proporcionou um momento de descanso que eles
desfrutaram intensamente.
Cada um
olhando para o outro. Um sentimento de dizer algo, qualquer coisa, subia por
suas espinhas. Eles continuaram em silencio, mesmo notando que a hora era
propensa para descobertas e decisões. Logo, fome eles começaram a sentir fome
também.
- e o que
fazemos agora? – perguntou Cínthia.
- não
podemos ficar aqui muito tempo, só até a gente recuperar o fôlego. – disse Phillip.
- tem razão...
– respondeu Jude, sem olhar para ele. – então voltaremos pra estrada.
E eles
tinham um plano. Pelo menos, até a próxima meia hora.
- fome e
sono. – disse Cínthia, lentamente. – tem combinação melhor?
- durma um
pouco. Acordamos você. – assegurou Phillip.
- aqui. Use
isso. – Jude lhe arremessou sua jaqueta.
Ela agradeceu,
e se deitou na grama. Phillip se levantou de repente.
- você está
ouvindo isso? – perguntou.
Os três
silenciaram. Eles olharam em volta, analisando, procurando. Então eles ouviram.
Alguém correu próximo a eles, puderam ouvir seus passos na grama. Ninguém a
vista. Cínthia se levantou. Os três olhavam na direção de onde ouviram os
passos. Então alguém passou correndo atrás deles. Eles se viraram. Ainda
ninguém a vista.
- nem pense
em perguntar se tem alguém ai – censurou Jude, quando Phillip começou a ficar
tenso. Este lhe devolveu o olhar.
Os três
ficaram mais próximos, atentos ao redor, esperando por algo que não tinham
certeza do que era, mas que suspeitavam com certeza. Então algo passou zunindo
pela orelha de Cínthia. Ela gritou e se abaixou. Phillip viu de onde viera o
disparo, e deu um passo em frente, mas foi paralisado pelo que ouviu em
seguida. Um grito. Um grito ensurdecedor, grave, contínuo, que lhe arrepiou por
inteiro.
Jude o puxou
para o chão.
- não mate a
gente. – sussurrou.
De joelhos, ele
fez sinal para que Cínthia e Phillip o imitassem. E não precisaram esperar mais
do que alguns instantes após o fazerem.
Logo
apareceram varias pessoas de lugares que os três jamais considerariam como
esconderijos. Jude observou mais ou menos quinze homens descendo a colina em
direção a eles, enquanto outros poucos formavam um circulo ao redor dos três.
Eles usavam vestes simples, tons de amarelo e marrom, calças e camisas
compridas, algumas mais sujas que outras.
Cínthia
notou as espadas na cintura de cada um dos que os cercavam. Bem ao lado da
espada, alguns possuíam facas compridas, com uma tira de couro atravessava
diagonalmente o peito. Dois ou três tinham a mão apertando o cabo de suas
armas. Embora fizessem uma carranca intimidadora, se podia notar que não eram
de fato maléficos por natureza. Mais para uma elite de guarda, ou batedores de
um exercito.
- como não
os vimos antes? – perguntou Cínthia, em sussurros.
- eles devem
saber como não serem vistos – respondeu Phillip no mesmo tom. – sabem como não
serem ouvidos...
- aí vêm
mais perguntas! – interrompeu Jude, apontando com a cabeça.
Descendo a
colina, vinham dois homens. De longe, podia se notar que eram algum tipo de
autoridade entre os homens, tanto pelo jeito de se vestirem, quanto pela aura
de comando que emanavam. Suas roupas eram mais escuras que as dos outros
homens, quase pretas, e eles eram os únicos que usavam um chapéu. De feltro,
escuro como seus casacos.
Eles se
aproximaram, e interromperam sua conversa quando entraram no circulo que se
formava ao redor dos três jovens. O homem a direita se inclinou para o
companheiro e cochichou algo em seu ouvido. Os dois riram.
O que estava
a esquerda chegou bem perto de Jude, Cínthia e Phillip, que ainda estavam
imóveis de joelhos na grama. Quando o fez, puxou de algum lugar em suas costas
uma faca comprida, um pouco manchada, que fez um tinido no ar como se estivesse
cortando o vento.
Ele se
abaixou e examinou o rosto de Jude, tão próximo que Jude pôde sentir seu hálito
de bebida. Ele segurou pelo queixo do rapaz e examinou os lados de seu rosto.
Jude fechou os punhos com força, tentando se controlar para não arrancar a faca
da mão do homem e fazer um refém para fugir daquela situação. Mas seria
arriscado tentar aquilo, já que alguns dos homens possuíam arcos e flechas que
poderiam fazer um bom estrago.
O homem
estava agora examinando Phillip, já havia passado por Cínthia. Então ele ficou
ereto novamente e voltou para perto do seu amigo de chapéu. Disse algo em seu
ouvido e saiu andando colina acima. O líder que ficou examinou os três
reservadamente de cima a baixo, andando em volta deles. Após alguns segundos,
disse pensativo.
- ele tem
razão... – e então seus olhos faiscaram,
mas durou apenas um instante, o suficiente para não ser notado por ninguém.
Ordenou para os três – levantem-se, e venham comigo.
Jude,
Cínthia e Phillip se entreolharam. A ordem foi tão inesperada quanto seria uma
ordem para que os matassem. Mas por um lado, eles sentiram aliviados. Então se
levantaram lentamente, tentando não fazer nenhum tipo de gesto que seus
captores poderiam tomar por perigoso ou ameaçador. Caminhando devagar,
prestando atenção a sua volta, no rosto de cada um dos homens que agora
pareciam relaxados, conscientes da idéia de que seus próprios chefes não
consideravam os três jovens uma ameaça.
Atrás de
Jude, Cínthia e Phillip, os homens os seguiram ordenadamente, marchando em
fila.
- o que você
acha disso tudo? – perguntou Phillip à Cínthia, olhando veemente para trás.
- melhor
desse jeito do que amarrados e com a ponta de uma espada na nossa garganta. –
respondeu ela.
- tudo bem,
mas o que você acha que vai acontecer desta vez?
- olhe,
quando eu tentei prever os possíveis desfechos da ultima situação, eu não tive
muita sorte. Desta vez eu sinceramente espero que não tenha sorte também. –
disse, alarmada.
Phillip não
respondeu, pensativo. Passou a observar onde os dois homens de chapéu os
levavam. Jude estava a alguns passos à frente, andando apressado, tentando
alcançar algum deles. Havia esquecido sua jaqueta, Phillip notou, e ao olhar
para trás, não viu nenhum dos homens a trazendo. Jude estava apenas com uma
camisa verde, um pouco suja nas costas. Phillip olhou para si mesmo. Suas
roupas estavam sujas também. Sua blusa azul manchada de terra, e algo que
pensou por um momento ser sangue. Seus jeans azuis não apresentavam muito
estrago, o que o deixou momentaneamente feliz.
Cínthia
notou Phillip observando suas roupas, e olhou para as próprias. Seu suéter uma
vez fora branco, agora tinha folhas e pequenos pedaços de galhos presos.
Parecia que ela havia brigado com um arbusto. Os jeans escuros estavam sujos
também, mas não aparentavam, apenas pela leve camada de poeira da estrada na
qual passaram maior parte do dia.
Ela olhou
para trás e flagrou um dos soldados olhando-a atravessado. Examinando-a. Ela
comparou suas roupas com as dele e se deu conta do motivo de serem tratados
desse jeito. Ela se sentiu extremamente deslocada naquele momento.
O terreno
íngreme não lhes ajudava, e a escalada foi árdua. Jude se mantinha adiantado em
relação a Phillip e Cínthia. Tinha esperança de conseguir descobrir algo com os
homens de chapéu. Estes andavam rápido e pareciam não ter problema algum em
andar num terreno com um ângulo de quase sessenta graus de elevação.
Quando os
dois pararam em determinado ponto, Jude conseguiu alcançá-los. Ao que ia lhe
dirigir a palavra, Jude olhou para trás. Ou melhor, para baixo. O pequeno lugar
onde Phillip, Cínthia e ele haviam parado para descansar estava há muitos,
muitos quilômetros abaixo.
- mas que
mer- tentou dizer, mas foi interrompido.
- quinze
minutos, apenas. – disse um dos homens de chapéu. Sua voz era grave, e
confiante. Voz de um comandante nato e excelente combatente.
Jude se
virou. Notou que agora eles estavam parados bem no pico do topo daquela, agora
considerava uma, montanha. Sua expressão de “mas-que-diabos!?” denunciava e
fazia todas as perguntas que passavam por sua mente naquela hora. O homem tirou
o chapéu por um segundo, passou a mão pelo cabelo liso e curto e recolocou o
chapéu. Sua voz soou pastosa.
- nomes são
para amigos, então não precisamos deles agora – disse, acenando com cabeça,
dispensando quaisquer apresentações – seus olhos não puderam ver o que você
esteve fazendo esta tarde toda, mas agora, aqui, longe da ilusão, você pode
tomar conhecimento.
Cínthia e
Phillip alcançaram o cume da montanha e se juntaram a Jude. Jude olhou para
baixo novamente. Para a estrada em que estivera andando com os dois. E se
chocou ao notar que ela circundava a montanha que eles se encontravam agora.
Formava um circulo perfeito, um circulo que os três passaram horas e horas
andando e andando. Cínthia levou as mãos à cabeça.
- em
círculos – disse, descrente. – a elipse é tão grande que não percebemos que era
uma curva. Assim como...
-... A
circunferência da Terra. – completou Jude, também desnorteado.
Phillip se
virou para o homem de chapéu.
- e essa
montanha? – perguntou, angustiado.
- mera
ilusão. – respondeu inocentemente o homem – nada que não poderia ser evitado se
tivessem o cuidado de olhar com atenção.
Naquele
momento Phillip teve vontade de acertar um murro no rosto dele.
- aqui, -
disse, se virando – vou mostrar a vocês.
Ele apontou
para o horizonte, a extensa planície de terra verde do outro lado da estrada.
Mesmo de longe, era como se os cinco pudessem ver o vento balançando a grama
alta, no chão. A grama parecia viva, para lá e para cá, dançando ao vento sem
sair do lugar.
Então aquela
visão embaçou. Jude, Cínthia e Phillip se assustaram. Era como se o horizonte
estivesse saindo e entrando em foco. Logo, o horizonte sumia, e então aparecia
de volta.
- olhem com
mais atenção. – disse o homem de chapéu que ficaram em silencio até agora – com
mais vontade.
Os três
obedeceram. Olharam com o intuito de ver através do plano. Através da ilusão.
Ver claramente. Descobririam mais tarde que aquele era o segredo: Desejar ver.
Então, de um
segundo para o outro, a planície verde que parecia viva se mexendo ao vento
desapareceu. A cor daquela paisagem sumiu, dando lugar a verdadeira imagem que
eles estavam contemplando o tempo todo.
Montanhas e
mais montanhas de terra enegrecida, queimadas, mortas. O solo de pedra
chamuscada, pequenas chiados vindo do terreno, brasas ainda soltando baforadas
de fumaça. Ruínas destruídas, outrora templos de alguma coisa em seus dias de
gloria. Em alguns lugares, membros humanos, ossos jogados por todos os lados.
Claramente restos mortais de muitas pessoas em todo lugar. Alguns carbonizados.
O próprio ar tinha cheiro de cinzas agora.
Os três
olharam em volta, apenas para notar que estava em todo lugar. O próprio chão
que pisavam havia se transformado. Cínthia tapou a boca com as mãos, enojada
pelo odor de morte que agora sentia. O sol havia diminuído sua luz, e eles viram
que o céu estava vermelho, apenas o horizonte continuava azul, divido por uma
cadeia de montanhas não tão distantes quanto parecia.
- meu Deus...
– exclamou.
- Deus? –
perguntou irritado o homem de chapéu que lhes ensinara como olhar – os deuses
esqueceram esse lugar.
E se afastou
em direção aos seus homens, chutando, onde passou, pedaço de algo que nenhum
dos três queria descobrir o que era.
- o que
houve aqui? – Cínthia conseguiu perguntar.
- bem, eu
poderia contar, - começou o homem de chapéu – mas acho que seria melhor se
vocês comessem algo antes.
O pensamento
desviou a mente dos três jovens da paisagem arruinada e os fez focar na
situação novamente. Eles estavam famintos. Era como se o estômago de cada um
deles roncasse alto quando ouviram a idéia. Tentaram ser discretos, entretanto.
Mas foi preciso apenas um vislumbre do brilho que perpassou os olhos dos três
para o homem de chapéu notar como lhes agradava tal pensamento.
O outro homem que usava chapéu se juntava a
eles, trazendo um dos seus homens consigo. Ele atirou uma mochila aos pés dos
três jovens, e começou a descer o outro lado da montanha, cuidadosamente.
Phillip abriu a mochila apenas para encontrar comida dentro. Algumas barras de
chocolate, cantis de água, frutas e alguns pedaços de pão. Os três, famintos,
fizeram uma refeição improvisada, até que seus estômagos pararam de roncar e o
cansaço sumisse aos poucos. Logo, eles estavam acompanhando o resto dos homens
montanha abaixo.
O terreno
era perigoso, escorregadio, trapaceiro. Tentaram avançar com o máximo de
cuidado possível, sempre seguindo as dicas dos homens de chapéu. Duas vezes
Jude vislumbrou o verde ao seu redor, sempre tendo que parar de andar e
respirar fundo para enxergar claramente de novo.
Horas mais
tarde, a mera lembrança do que os três viram era suficiente para lhe dar uma
sensação ruim no estomago. Phillip e Cínthia andavam em silencio, e dessa vez
Jude andava atrás deles. Cada linha de pensamento que passava por suas mentes
era tão pessoal que eles não se atreviam a repetir em voz alta O cenário agora
era um solo marrom de terra. Duro, com pontiagudas pedras brotando do chão. Era
um vale profundo, isolado por dois penhascos que se estendiam ao longo do
trecho, formando duas paredes de rochas. Era como se estivessem num canyon de
menor porte.
O solo, tão
sólido, não deixava para trás marca alguma de pegadas.
Marchando
normalmente, os homens que seguiam os dois de chapéu conversavam entre si,
embora nem Jude, Cínthia ou Phillip conseguisse entender uma palavra. Quando os
soldados olhavam ao redor, os três jovens notavam as expressões nos rostos, nos
olhares. Mas os três não tinham o menor desejo de perguntar. Iriam esperar pela
hora que eles decidissem contar algo.
- chegamos.
– avisou repentinamente, para todos, um dos homens de chapéu, apontando para
alguma coisa na parede rochosa à esquerda.
Houve um
murmúrio de contentamento entre os homens atrás dos jovens, e eles logo
apressaram o passo. Phillip, Jude e Cínthia se apressaram para ver o que o
homem estava apontando. Eles viram os dois homens de chapéu apalpando a parede
vermelha atentamente, até que eles encontraram algo, e deram um puxão forte. E
ali na parede, se formou uma escada de mão, feita de pedra.
Ela subia
até o alto da parede montanhosa. Os soldados começaram a subir sem hesitar,
demonstrando que faziam isso muitas vezes. Um atrás do outros, fazendo suas
espadas e equipamentos tilintarem ao levantarem as pernas para alcançar outro
degrau. Ao que restavam apenas os três jovens e o homem que lhes dera a bolsa
com comida, ele colocou a mão na escada e subiu um degrau. Olhou para trás,
para Cínthia, Phillip e Jude, e perguntou:
- o que
estão esperando?
Ele o disse
ostentando um sorriso no canto da boca, certamente estava se divertindo na
duvida e surpresa dos três. Sem esperar uma resposta, ele lhes virou as costas e
começou a subir.
Os três se
entreolharam. Phillip deu de ombros e começou a subir a escada. Jude seguiu
logo atrás. Mas Cínthia sentiu um calafrio subindo sua espinha. Ela olhou em
volta, a procura, e não encontrou nada. Sabendo afinal o que fora aquilo, ela
respirou fundo e começou a subir atrás de Jude, se perguntando coisas das quais
ela sabia que jamais encontraria as respostas.
L
Chapter V - Perfect Day
-... Meu pai? - exclamou Nayara de repente, assustada.
Estivera ouvindo atentamente a historia de Matheus, mas até
aquele momento, não refletira muito sobre ela. A menção de seu pai, porem,
chamou-lhe a atenção. Jamais o conhecera, jamais tivera qualquer informação
sobre ele a não ser aquilo que sua mãe lhe havia contado. O que não era muita
coisa.
- sim, seu pai. – Matheus confirmou.
Agora isento de sua barba falsa e sua peruca, jogados em um
canto ao lado do cajado que segurava. Sua barba estava um pouco mais comprida
desde que aceitara a missão de Wes, e sua expressão parecia ainda mais cansada.
Não estava tão velho quanto seu disfarce lhe proporcionava ser, mas ainda assim
sua idade era avançada comparada aos feiticeiros que tivera de enfrentar.
O pequeno truque de magia que Wes lhe ensinara o serviu bem,
embora ele estivesse mais cansado do que estaria se tivesse lutado com cada um
deles com suas próprias mãos. O preço da magia, ele lembrou.
Os corpos de Getulio e dos dois soldados não estavam mais a
vista, Matheus os havia carregado para dentro do pequeno aposento nos fundos
daquela capela, e lá permaneciam escondidos. Os destroços de madeiras dos
bancos, porem, ainda estavam espalhados pelo chão, e Nayara desviava de cada um
enquanto andava para lá e para cá, pensativa.
- então – finalmente ela disse – você está dizendo que eu sou
herdeira do trono, porque meu pai era o rei de vocês, mas ele esta morto agora,
ou seja, eu sou órfã de pai.
- correto – assentiu Matheus com um pesar no coração – e você
esteve todo esse tempo que cresceu, vivendo num mundo que não é este.
Nayara sorria debilmente enquanto Matheus falava, como se
achasse que aquele homem estava quase senil e falando bobagens. Seus olhos
estavam arregalados, surpresos com a certeza dele ao falar.
- e tudo isso quer dizer que eu vou ser rainha “deste” mundo um
dia? – ela perguntou, ainda sorrindo – e que eu vou governar um reino inteiro?
Matheus baixou a cabeça, e suspirou baixinho. Levaria mais tempo
que ele supôs para fazê-la acreditar em suas palavras.
- Nayara, você não
compreende o quão serio isto é. Não compreende o quão importante você é.
- é você que não esta compreendendo, - disse ela, fazendo
desaparecer o sorriso em seu rosto – isso aqui, é tudo loucura. Eu estou sonhando,
só pode ser isso.
- após o que você viu agora há pouco, ainda suspeita que isso é
um sonho? A não ser que já tenha sonhado com algo assim antes, o que mostra que
em algum lugar de sua mente, você já sabia daqui.
Então ela levou as mãos à cabeça, fechou os olhos com força,
tentando fazer tudo desaparecer, tudo silenciar, tentando tomar controle de seu
sonho, embora ela ainda tivesse aquele pequeno arrepio em sua espinha lhe
dizendo, lhe dizendo que não daria certo. Então ela os abriu de repente e sua
expressão murchou quando ela viu que o ambiente não mudara, e que Matheus ainda
estava parado no mesmo lugar a observando.
- ainda aqui? – ela perguntou.
- ainda aqui.
Nayara correu os olhos pela sala, então fitou a porta atrás de
si, e novamente fitou o teto. Milhares de pensamentos, e idéias, e perguntas
figuravam em sua mente naquela hora, e cada uma parecia mais absurda que a
outra.
- não é um sonho? – perguntou, levantando a sobrancelha.
- não é um sonho.
Ela mordeu o lábio, apreensiva. Por um lado, se tudo aquilo
fosse real, então o mundo que ela sempre julgou conhecer nunca fora mais que
uma pequena parcela de algo maior, muito maior. Tal pensamento a apavorava.
- você não precisa ter medo – Matheus disse suavemente, e ela o
encarou. – você estar aqui é ordem
natural das coisas.
- você está falando de destino? – Nayara perguntou descrente. –
eu não acredito em destino.
Matheus levantou a sobrancelha.
- não acredita em destino... – ele repetiu – e por que?
- porque eu prefiro acreditar que eu posso fazer o que quero com
minha vida.
Ele se levantou, e se aproximou dela. Nayara recuou lentamente,
encarando-o. Os olhos azuis a perfuravam, embora seu olhar fosse mais paternal
do que apreensivo.
- eu ouvi seu pai dizer as mesmas palavras certa vez – ele disse
– ele acreditava tanto nelas que... – então silenciou. Memórias de seu velho
amigo vieram a sua mente, agora ilustradas pelo rosto de sua filha. Pela
primeira vez desde que sua família fora levada, Matheus sorriu. Aquele sorriso
durou apenas instantes, mas foram o suficiente para Nayara perceber.
Ela tentou imaginar como ele era. Como seu pai era. Sua atitude,
o som de sua voz, o seu rosto. Como ele andava ou como ele ria. Jamais o
conhecera, e sua mãe jamais falava dele. Não que nunca houvesse perguntado. A
única coisa que ela lhe falou, era que ele foi um bom homem com quem o destino
não fora gentil. Nayara nunca se perguntou o que aquilo significava.
- vocês eram amigos? – ela perguntou, lentamente.
- sim, nos éramos.
- muito próximos?
- o bastante para sentir sua falta quando morreu.
- como ele era?
- justo e gentil, um amigo em milhões.
- como ele morreu?
Eles se encaram por alguns segundos. Até que finalmente ele
falou.
- por minha culpa.
Ambos perpetuaram o silencio. Nayara, porque sentiu na resposta
de Matheus a tristeza que ele não queria ter demonstrado. Por muito tempo, a
culpa da morte de Frederic era sua. E tantos anos acreditando fizeram-no
aceitar que era. Isso já não o incomodava, até o momento em que teve que
dizê-lo em voz alta para a própria filha de Frederic.
- por que você se culpa? – ela perguntou no mesmo tom de voz
anterior.
Ele não a respondeu logo. Ele refletiu por instantes. Aquelas
perguntas seria um sinal de que ela estava se interessando? Seria um sinal de
que ela estava acreditando?
- ele é meu pai, não? Eu quero saber – disse ela tão confiante,
e Matheus sentiu que ela podia estar lendo sua mente através de sua expressão.
Ele fechou suas mãos com força, fazendo as veias azuladas destacaram em seu
punho, e se preparou para reviver suas memórias.
Ele contou a ela sobre o fatídico dia em Itsumo, e sobre o que
acontecera depois. Como Halana havia sumido repentinamente, e a facilidade com
que os Quatro Irmãos haviam tomado controle do governo, uma vez que não havia
mais nenhum membro da linhagem real para reclamar o trono e impedi-los.
Seguindo a linha de acontecimentos, contou sobre como os anos se arrastaram em
Coda, um após o outro, liderados pela mão-de-ferro do governo e ilustrados por
batalhas, sangue e morte.
Sua historia se estendeu noite adentro, e Nayara ouviu tudo
interessadamente. Para ela, aquilo estava cada hora mais longe de ser apenas
uma historia. Ela fez algumas perguntas, mas a maior parte do tempo ouviu
atentamente. E compreendeu a tudo.
Ele ocultou o chamado que recebera do Império, e o rapto de sua
família, mas contou sobre o encontro com Wes, e sobre os boatos que haviam
surgido acerca de sua presença.
-... então, eu estive esperando por você aqui desde então. –
Matheus terminou.
- e você acha que eu vou poder retomar o trono deles, já que eu
sou descendente da realeza... – disse Nayara, levantando a sobrancelha. – mas,
em primeiro lugar, como eu faria isso?
- cruzaremos essa linha quando chegarmos nela – respondeu
Matheus indiferente. – o essencial agora é que você entenda e aceite o que você
é, ou então nada dará certo daqui para frente.
Nayara pensou e pensou, então achou outra brecha para duvidar.
- e se eu realmente conseguir tomar novamente esse trono, então
o que? – perguntou ela – vou ficar aqui e reinar? Não vou poder voltar para
casa?
- quando você for rainha, nada poderá impedi-la de fazer o que
quiser – Matheus a tranqüilizou, embora tivesse certeza de que, no fundo, ela
não desejaria voltar para casa quando tudo acabasse por bem ou mesmo por mal.
Nayara então relaxou um pouco. Mantendo o olhar fixo no azul dos
olhos de Matheus, ponderando sobre o que devia fazer. Aceitar o que ele estava
dizendo poderia ter conseqüências drásticas no futuro, e se não aceitasse,
talvez não pudesse voltar para casa.
Antes que decidisse fazer algo, a porta dupla no fim do salão
onde estavam se abriu suavemente, mas ainda assim provocou um sobressalto em
Nayara. Matheus deu um passo a frente ao encontro de Wes, que andava na direção
deles pelo chão de pedra, despindo um longo casaco marrom, e espanando com a
mão a poeira de suas vestes cor bege.
Ao chegar perto, ele olhou para Nayara e prontamente curvou-se,
exclamando orgulhoso e com um sorriso.
- Alteza, seja bem vinda mais uma vez entre nós. – disse ele –
embora a última vez que esteve aqui era tão pequenina que suponho, nem
lembrar-se dela o faz.
Nayara ficou aborrecida por ele se referir tão formalmente
assim, até aquele momento não havia lhe agradado nem um pouco clamarem-na
rainha. Entretanto, ser uma rainha, tal como eles descrevem, ainda com todos os
perigos, era uma possibilidade maravilhosa. Talvez isso a acalmasse, ou talvez
isso a preocupasse ainda mais.
Mas ela nunca se perguntou porque aceitou.
- chega de bajulação, Wes – intrometeu-se Matheus. – o que você
descobriu?
- precisamos conversar, - disse ele apreensivo, lançando um
olhar de soslaio para Nayara – vamos lá fora um segundo.
Matheus levantou as sobrancelhas, decididamente aquele era um
assunto que implicava a segurança de Nayara. Ele concordou com um aceno, e se
virou para a jovem.
- você deve estar precisando de um tempo – disse, gentil porem
firmemente – para processar todas essas informações.
Nayara prendeu a respiração enquanto ele falava, talvez apenas
para se acalmar. Wes se aproximou.
- vamos lhe deixar sozinha com você mesma por alguns minutos, ó
princesa – disse ele, dando ênfase na denominação “princesa”. Nayara o encarou
com raiva. – Medite, e certifique-se de escolher corretamente sobre o que fazer
a seguir.
As suas palavras foram repreensivas, mas recheadas de gentileza,
como um aviso disfarçado de ameaça. Ele piscou para ela, e se afastou a passos
largos em direção a porta dupla por onde entrara pouco antes.
- não se preocupe, - Matheus a tranqüilizou, lançando a ela um
olhar paternal. – a sua escolha será a correta, não importa qual seja.
Ela concordou com a cabeça e ele também a deixou, para se juntar
a Wes lá fora. A porta bateu com um estrondo leve quando ele passou por ela, e
a jovem estava então sozinha novamente.
Nayara passou as mãos pelo rosto, tentando conciliar o que
descobrira com o que já sabia, e o que devia fazer, com o que já havia feito.
Ela correu os olhos pelo salão, para se distrair, para se acalmar. A noite já
se instalara lá fora, mas as velas ali dentro estavam acesas há muito tempo.
Ela procurava, nas sombras das colunas, nas fileiras dos bancos, no calor das
chamas, uma prova de que era tudo de verdade. Uma prova, que há muito ela já
tinha.
Ruídos chamaram sua atenção de repente, e assustada, ela
procurou em volta a origem do barulho. Ela se levantou e andou alguns passos,
ainda à procura. Aliviou sua tensão quando viu que era apenas um pássaro negro,
semelhante a um corvo, talvez o fosse, ela não conseguiu distinguir,
empoleirado no batente de uma janela de vidro. A janela ia do chão até a metade
da altura da parede, e então outra janela igual alcançava o teto. Oculta
anteriormente pela cortina, agora Nayara podia visualizá-la de sua posição.
Ela se aproximou, e o pássaro a observou chegar perto.
Cautelosa, ela estendeu a mão, no intuito de alcançar o pássaro. O pássaro,
embora negro, era muito mais bonito que um corvo. Nayara não pôde evitar querer
tocá-lo. Mas ao tentar fazê-lo, o pássaro deu-lhe as costas e voou para longe,
desaparecendo no céu noturno.
Nayara observou o lugar onde o pássaro se fundiu com a escuridão
do céu, pensativa, refletindo sobre varias coisas, e uma pequena queimação
começava a crescer dentro dela. Outro tipo de sensação se apoderou pouco a
pouco de seu corpo e mente.
A janela estava aberta para o mundo lá fora, e isso dava a
Nayara uma idéia...
Lá fora, naquela noite escura, em frente à igreja de pedra que
agora era iluminada por tochas nos archotes, dois homens conversavam. A rua
estava silenciosa, e suas sombras eram suas únicas companheiras. Os dois tinham
pesar em suas palavras, e ambos não desejavam estarem conversando sobre aquele
assunto. Wes fitou Matheus sob a luz das chamas.
-... Kidzukenakatta. Era no mínimo um regimento inteiro. –
concluiu ele.
Matheus refletiu por alguns segundos.
- e por quanto tempo eles vão ficar lá?
- tempo suficiente. Isso nos dá varias opções - uma coruja piou
em algum lugar. Wes continuou. - Juliana estava lá quando chegaram. Ela viu
Mila, e sua filha também.
O rosto de Matheus se iluminou, mas logo a expressão fechada
retomou seu lugar.
- Kidzukenakatta não faz parte do Império. Por que eles se
arriscariam tão desprotegidos assim? – perguntou. – A Resistência, e até mesmo
a Divisão tem muitos espiões naquela cidade.
- Creio na idéia que ele espera que você vá atrás delas. Você, e
mais ninguém. - Wes respondeu pensativo – não consigo pensar em outro motivo
para elas não terem sido levadas diretamente a capital. O que a Resistência e a
Divisão iriam querer com duas mulheres normais, afinal?
- o que você acha que eu devo fazer? – perguntou Matheus.
Wes levantou a sobrancelha.
- lutar contra qualquer um que aparecer na sua frente para
chegar até elas. - ele brincou – e não deixar vivo nenhum homem, mulher ou
criança que possa um dia carregar uma espada.
Matheus arregalou os olhos.
- seria melhor contatarmos alguém antes de irmos para lá. –
disse, ignorando totalmente o comentário anterior – a cidade fica a uns quatro
dias daqui.
- e quanto a nossa
pretendente a rainha aqui? – perguntou Wes, irônico – o que vamos fazer com
ela, senhor determinação-em-pessoa?
Com essa pergunta, Matheus se afastou pensativo, e foi observar
a extensão da rua à frente deles, deserta naquele momento. Ele prometera a si
mesmo que não deixaria sua família nas garras do Império tempo maior que o
necessário. Ele poderia ir até Kidzukenakatta e resgatá-las, mas isso poderia
por em risco outras coisas tão importantes quanto sua família. Respirou fundo e
expôs sua idéia a Wes.
- você pode levá-la com você.
Desta vez foi Wes quem levantou a sobrancelha.
- levá-la comigo - ele repetiu – e para onde?
- para Ninris Lunxus.
Wes abriu a boca para dizer algo, mas silenciou em seguida.
Ninris Lumxus, túmulo antigo de várias gerações Reais, era
perigoso demais para Nayara. Situado longe o suficiente para que a viagem
levasse semanas, Nayara não estava pronta ainda para ir para lá. Embora aquele
fosse um destino inevitável na jornada da garota, o homem queria adiá-lo ao
máximo.
- Aquela tumba está cheia de monstros. – argumentou ele – os
espectros de areia reclamaram aquele mausoléu há muito tempo. Nenhum de nós
conseguiria sobreviver lá. Não ainda.
- cedo ou tarde teremos que ir lá, Wes. É o único lugar onde
ainda existe qualquer vestígio da linhagem real. O único lugar onde ela poderá
encontrar algo que prove ela ser a herdeira.
- iremos lá somente após o treinamento dela. Não há o que
discutir.
Com aquela resposta, ambos ficaram em silencio. Matheus passou a
observar novamente a rua, e se deu conta que jamais havia presenciado uma noite
tão silenciosa em Samantha.
Ao olhar em volta e não notar uma alma viva, ele se deu conta de
que havia alguma coisa, alguma coisa mínima, porém errada. Wes se juntou a ele,
então ambos caminharam até o meio da estrada, olhando para um lado e para o
outro. Matheus cutucou o amigo, e apontou para mostrá-lo.
Lá, no fim da rua, uma pequena rajada de vento vinha se
fortalecendo, pouco a pouco, em direção a eles. O ventou uivava na noite
escura, e levava com ele folhas verdes e papeis do chão. Não uma rajada de vento comum, mas algo que
eles sentiram ser... Maligno. A noite começou a esfriar.
Eles se entreolharam, e voltaram correndo para dentro. Após a
porta bater atrás deles, eles se deparam com o salão vazio. Nayara não estava
mais lá.
A
rua parecia enevoada.
A
garota não sentia nada alem do próprio desejo de fugir e sobreviver. Corria em
intervalos, sempre a olhar para trás. Sentia que havia alguém a observando, mas
não enxergava ninguém. Dobrava esquinas a bel-prazer, sem imaginar onde seus
pés a levariam.
Parte
de sua consciência a castigava, pela loucura de se aventurar solitária à noite,
e a outra parte argumentava com o fato de que ela estaria melhor sozinha.
Ela
virou a esquerda numa rua larga, e correu até o fim dela. Então percebeu que se encontrava em uma
encruzilhada. Não havia moradas por perto para que ela pudesse chamar par
ajuda, mas de que adiantaria? Ela parou, respirou fundo e analisou os caminhos
que poderia seguir, ainda que não tivesse certeza de onde desejava ir.
Sentiu
uma pontada de frio repentina, e massageou seus braços para esquentá-los. Perguntou-se onde estariam suas roupas.
Aquela blusa branca e fina não estava lhe aquecendo nem um pouco. Então ela
ouviu seu nome, distante. Alguém estava procurando por ela, e não havia duvida
de quem era.
A
neblina havia aumentado consideravelmente desde que fugira, e ela não havia
notado. Agora, ela não poderia sequer dar-se conta de que estava em uma
encruzilhada. O vento ainda uivava, e dava a ela arrepios. A noite escura se
estendia, deixando sua situação mais perigosa ainda.
O
ápice de seus temores foi atingido quando ela deu um passo e se viu encarando
alguém, uma sombra erguida do chão, alguns metros a sua frente.
O
susto fora discreto, mas não pequeno. Nayara sentiu o coração palpitar quase
para fora do peito. Olhando para os lados a procura de qualquer coisa, ela não
viu ninguém. Ninguém mais. E pensou, por quanto tempo o vulto estava ali,
parado, observando-a?
Uma
figura solitária, parada no meio da rua, imóvel. Vestindo o que Nayara pode
identificar como uma longa capa negra, e um capuz, já que o formato de sua
cabeça era incomum. A neblina, a nevoa, impossibilitava Nayara de ver alem
dela, ou mais distante para qualquer lado.
Se
ela tentasse correr, Nayara pensou, será que a figura a alcançaria? Será que
seria poderia ser rápida o suficiente para despistá-la? Era impossível quem
quer que fosse ali embaixo do capuz, pudesse estar enxergando melhor que
Nayara, ela pensou.
Então
ela ouviu novamente seu nome.
Ainda
alguém procurava por ela. O vulto de capuz também ouviu, e em algum lugar
embaixo do capuz seus olhos observaram o lado de onde o chamado viera.
Inquietou-se após notar que a voz estava mais próxima do que da primeira vez.
A
vontade de Nayara gritar para dar um sinal de onde se encontrava desceu com
dificuldade por sua garganta. A figura voltou sua atenção novamente para ela.
Nayara recuou para trás, quase tropeçando em seus próprios pés. O vulto
avançou.
Fantasmagórico,
através da nevoa ele parecia flutuar. Ao ritmo que Nayara se afastava, ele se
aproximava, erguendo suas mãos no ar em direção a ela. “Se ao menos eu pudesse
enxergar alem de meu nariz, nessa neblina toda”, desejou.
Suas
costas então se chocaram contra algo rígido, ao que ela viu ser uma parede,
alguns centímetros mais alta que ela. Ela enterrou com força os dedos nas
pedras da parede, assistindo lentamente a figura se aproximar mais em mais. Ela
já podia ouvir a respiração dele. Suas mãos poderiam alcançá-la já, mas ele
continuou avançando, e ela percebeu que já havia visto alguém como ele, quando
chegou mais perto. Nayara tinha o olhar vidrado, tomado pelo pavor.
Então
como se seu sangue estivesse borbulhando, como se o seu medo tivesse
transformado em energia e estivesse percorrendo seu corpo, fazendo com que seus
pés e suas mãos formigassem, ela o viu saltar em sua direção. Ela pulou para
cima no mesmo instante.
Nayara
o ouviu gritar e cair contra a parede, enquanto ela dava uma volta no ar e
aterrissava levemente no chão, bem atrás dele. Arfando, amedrontada, extasiada
e surpresa pelo que acabara de realizar, ela fitou o homem comum, agora de
carne e osso, estirado no chão.
A
névoa, que ainda serpenteava no ar, diminuiu precariamente. Embora a
encruzilhada ainda estivesse às cegas pela escuridão. Nayara respirou fundo e
fechou os olhos. Alguém gritou novamente nas proximidades. Agora aliviada,
Nayara sorriu, embora ninguém pudesse ver. Ela deu as costas para o vulto no
chão, e começou a correr na direção da voz, suas dúvidas e medos anteriores
apagados pelos repentinos acontecimentos.
Ainda,
ela não pode chegar longe, pois a mesma situação se repetia.
Outros
três vultos sombrios apareciam a sua frente.
-
o que vocês querem? – ela urrou, em desespero.
Não
ouve resposta, embora um sussurro ecoasse na noite, e ela poderia jurar que
dizia: “você, há muito tempo”.
Desta
vez, completamente sem saída, Nayara continuou parada, impassível. A vontade de
destruir aquelas três figuras a sua frente passou por seu corpo, arrepiando-a.
Seu sangue voltou a ferver e a única coisa que ela conseguia sentir era raiva.
-
bom, venham me pegar. – ela desafiou, e ela se deu conta que as palavras saíram
sem seu comando.
Os
vultos não se entreolharam, embora Nayara sentisse as pálpebras deles
examinando o ambiente em volta. Era como se ela soubesse o que iriam fazer, mas
não previu que eles desembainhariam cada um uma longa espada. O zunido não a
incomodou, embora devesse deixá-la em pânico. Ela continuou parada, mesmo
quando eles avançaram lentamente, lentamente em sua direção. As espadas
apontando para cima, dando a eles erradamente o aspecto mais terrível que lhes
podia ser atribuído.
Calma
estava apenas por saber o que eles queriam. Eles não pretendiam matá-la, ela
tinha certeza. Queriam a mesma coisa que Getulio queria. Levá-la para algum
lugar. Era o que a tranqüilizava.
Eles
estavam mais perto agora.
Um
deles virou-se, algo às suas costas chamou-lhe a atenção. Ele deixou seus
companheiros e desapareceu na névoa.
Um
grito. Um urro. O som de metal chocando com metal. Outro urro. Os outros dois
vultos correndo para junto do companheiro. Uma mão no ombro de Nayara. O
constante som de metal chocando em metal novamente. Outro grito. Palavras
gritadas também. Nayara olhou para o lado.
-
Jamais faça isso novamente. – Wes sussurrou severamente, olhando para o lugar
onde as figuras desapareceram. Ela balançou a cabeça, positivamente, em
resposta.
O
som da briga ainda chegava ao ouvido deles. Wes a segurou pelo braço e puxou
consigo, no intuito de afastá-la, mas Nayara desvencilhou-se da mão dele e
correu na direção da luta.
-
pegue a garota! – uma voz grave gritou em algum lugar, no meio da neblina.
Nayara a ouviu, e continuou correndo, parecia
que estavam lutando tão distante dela propositalmente. Wes a seguiu, chamando
por seu nome.
Entre
a espessa neblina, uma das figuras surgiu cambaleante. Apoiando sua espada no
chão para conseguir andar, ela encarou Nayara. Seu capuz estava jogado para
trás e ela pode ver o rosto do homem que estava por baixo. Sangue escorria do
canto da boca, o supercílio também sangrava e sua barba negra agora estava
vermelha. Os olhos do homem brilharam ao fita-lá.
Mas
a expressão dele foi o que a paralisou. Ele a olhava como se ela fosse um raio
de sol após semanas de tempestade. O brilho nos olhos dele era tranqüilo, e era
feliz. Ele estendeu a mão para alcançá-la, mexendo os lábios, balbuciando
palavras inaudíveis. Ele não parecia querer machucá-la.
Ela
parou de correr também o encarou. Wes gritou e ela sentiu alguma coisa lhe
eriçar as orelhas, e viu o homem a sua frente ser levado violentamente para
trás por uma força invisível. O muro metros atrás dele explodiu em pedaços
quando ele se chocou e deslizou desacordado para o chão, onde permaneceu sem se
mover mais. Nayara olhou para trás, viu
Wes parado, ainda com o braço estendido. Ele fitava o homem caído perto do
muro, o olhar vidrado. Então notou que ela o observava e se recompôs, piscando
varias vezes ao olhar para os lados. Mas ele não se mexeu, nem quando ela se
afastou. A garota o ignorou por um segundo e se virou para onde sabia que
Matheus ainda estava lutando.
Ao
chegar mais perto, a neblina não mais a impediu de ver o que estava
acontecendo. Havia um, dos três encapuzados, caído no chão, presumivelmente
derrotado. Matheus duelava com o ultimo que restava. O tinido agudo da luta não
a incomodava mais.
Matheus
lutava agilmente, mas seus golpes eram sempre bloqueados pelo seu adversário.
Ele girou e deixou a espada paralela ao corpo, segurando firme o punho para
aparar o golpe horizontal de Matheus em direção a suas costelas, e então chutou
o estomago dele com o pé, jogando Matheus para trás. No terceiro passo, Matheus
conseguiu se recompor, apenas para ver seu adversário avançando em sua direção,
a espada diretamente apontada para seu coração.
Conseguira
desviar para o lado no ultimo segundo, fazendo com que a espada estocasse
apenas o ar, e então foi sua vez de contra-atacar. Mirando no ombro dele,
Matheus girou a espada por cima de sua cabeça, e suspirou de decepção quando
fora bloqueado. Ainda tentou mais três vezes atingi-lo, girando para esquerda e
direita, trocando a espada de mão, apunhalando e atingindo apenas o ar ou o fio
da outra espada. Sem sucesso.
Matheus
estava ficando cansado, mas não podia parar de lutar. Ele percebeu, quando
rebatera um golpe ao seu pescoço, Nayara se aproximando. Perguntou-se por um
segundo onde estaria Wes. Mas a pergunta foi varrida de sua mente pelo impacto
de sua espada contra a carne de seu adversário. Finalmente, ele conseguira
atingi-lo. O homem encapuzado recuou, mancando, segurando a coxa direita,
manchando sua mão de sangue, negro à precária luz. Aproveitando o momento de
dor de seu adversário, Matheus atacou. As duas espadas novamente se encontraram
no ar, e ali ficaram. Presas entre os dois corpos, disparando faíscas no lugar
onde havia o atrito de uma na outra. E por segundos ali continuaram. Então o
homem encapuzado soltou uma das mãos do cabo, e três longas garras surgiram de
dentro de sua manga, projetadas de seu punho fechado. Brilhantes e afiadas, ele
lançou a mão ao ar, num rápido movimento, atingindo Matheus no rosto.
Sangue
respingou ao vento, Matheus pulou para trás, estancando com a mão os três
profundos cortes na sua bochecha, mas ainda segurando firme a espada com a
outra. Ele parou, arfando, e encarou seu inimigo, que fez o mesmo. Então os
dois olharam para Nayara, que assistia a tudo, paralisada a poucos metros. Mas
antes que eles pudessem fazer algo, passos ecoaram na neblina, e então surgiu
Wes ao lado dela. O homem encapuzado recuou alguns passos, vendo que não
poderia enfrentar o guerreiro e o feiticeiro ao mesmo tempo. Wes avançou em sua
direção, e Nayara deu dois passos para trás. Então o vulto de capuz ficou
ereto, e baixou a espada. Logo depois ele levou as mãos à cabeça e jogou para
trás o capuz. Atrás de duas pequenas lentes arredondadas, dois olhos
faiscaram.
Seu
cabelo era bem curto e louro, sua expressão cansada. Seu nariz sangrava e sua
boca estava arroxeada pelas pancadas do cabo da espada de Matheus. Um pouco de
sangue seco ainda restava em sua têmpora. Matheus relaxou um pouco onde estava,
o sangue já escorria pelo seu pescoço. Fitava o homem de óculos com os olhos
semicerrados, preparado para qualquer movimento dele.
E
ele apenas encarou Wes e Matheus, arfando, por segundos, até que se pronunciou.
-
vocês lutam por ela! – ele avisou, sua voz se arrastando pesadamente – vocês
ainda morrerão por ela. Não importa quais os planos que vocês tenham, não terão
sucesso.
Nayara
fitou Matheus, preocupada, que lhe devolveu o olhar. E então olhou para Wes,
que já a observava. Wes voltou a atenção ao homem. Deu um passo a frente, e
estalou os dedos.
-
vá embora. – ordenou. E o homem desapareceu. Como se nunca houvesse estado ali
antes.
Nesse
segundo onde o que se ouvia era o assovio do vento, Matheus desabou ao chão, e
Wes correu para socorrê-lo. Apoiando-se no ombro do amigo, Matheus reclamou.
-
estou ficando velho.
Wes
soltou uma gargalhada.
-
você ainda tem muitos anos pela frente até me alcançar.
-
alguns anos atrás, eu poderia dar cabo dos três, sozinho.
-
anos atrás você usava uma armadura e todos temiam seu nome, era por isso que
ganhava.
-
ah, cale a boca.
Logo
depois, Nayara andava lado a lado com Matheus, descendo uma larga rua em
direção a um enorme portão. A saída de Samantha, onde eles encontrariam cavalos
para irem embora, como os instruiu Wes. Wes não estava com eles, se separara
pouco antes para limpar a bagunça resultante da ultima luta, sozinho. Avisou que
os encontraria mais tarde. Os três cortes no rosto de Matheus quase paravam de
sangrar, e ele decidira não mais se preocupar. Sua roupa estava ensangüentada e
encharcada de suor. Seu braço estava dormente e sua espada descansava na bainha
em sua cintura.
-
porque estavam atrás de mim? – Nayara perguntou, após algum tempo.
Matheus
bufou de cansaço, mas então falou.
-
Só posso dizer o que acredito que sejam. Quero dizer, eu já topei com parecidos
antes. – ele buscou fundo em sua memória – mas até onde eu sei, eles não
sujavam as mãos assim, tão abertamente.
Nayara
o fitava com interesse.
-
quem? – perguntou, inquieta.
Ele
devolveu o olhar.
-
se auto-intitulam, ou se auto-intitulavam a Divisão. – ele pronunciou o nome
com certo desprezo. – surgiram há muito, muito tempo atrás. Eles chegaram e se
proclamaram os donos da historia. Embora soubéssemos que eles existiam, não
tínhamos idéia de quem eram.
Ele
silenciou, para que Nayara absorvesse as informações. E então continuou.
-
Eles eram como fantasmas. Em todos os lugares e ainda assim invisíveis para
nós. Nunca conseguimos enfrentá-los cara-a-cara, em todos longos anos que os
caçamos.
-
e o que houve com eles?
-
não se sabe. Talvez foram morrendo aos poucos, talvez batalharam entre si, se
separaram... Infinitas possibilidades... – balbuciou, pensativo. Então parou de
andar, e olhou para trás.
-
o que foi? – perguntou Nayara.
Ele
não respondeu de imediato. Praguejou baixinho, e então se virou para ela,
inconformado.
-
é isso. – exclamou ele – maldição, porque não nos demos conta antes?
Nayara
continuava sem entender. Matheus começou a falar rapidamente.
-
a resistência está se mobilizando, a Divisão voltou mais forte ainda, os quatro
irmãos se separaram, os portais estão abertos... – então ele levou as mãos à
testa e não disse mais nada.
Por
alguns segundos, ele ficou ali, parado, sendo observado pela jovem, sem fazer
qualquer movimento. Então Nayara fez menção de se aproximar, e ele finalmente
relaxou.
-
vai me dizer o que houve? – pediu ela, impaciente.
O
homem bufou lentamente antes de responder. Parecia que toda a tristeza do mundo
estava passando por seus olhos, quando ele os levou do chão até os olhos de
Nayara, calmamente.
-
você não entende? É uma corrida pelo poder! – disse ele, com um olhar vívido.
Nayara
se espantou com a expressão dele, até que ele gargalhou alto e recomeçou a
andar. Ela o acompanhou, vendo que faltava pouco para alcançarem o imenso
portão de madeira da entrada de Samantha. Mas ele andava rápido, e ela quase
precisava correr para acompanhá-lo.
-
o império está dividido, Andrei e Alexandro brigam entre si, - começou ele – a
resistência acredita que é a hora de atacar, atacar quando o inimigo está
enfraquecido. A divisão sabe que você, a herdeira legal do trono, está de volta.
Nayara
ficava em silencio, acompanhando o raciocínio de Matheus, embora a quantidade
de informações não fizesse sentido para ela. Ele notou a confusão dela.
-
estão todos atrás de uma parcela de poder. O Império está enfraquecendo cada
vez mais, ao passo que a resistência agora tem você. A Divisão veio atrás de
você para ter uma chance também. Faz todo o sentido. – agora ele falava com
certo pesar. – vão vir todos atrás de você agora, Nayara.
Eles
haviam chegado ao portão. Nayara parou para observá-lo, e suas extensões
laterais, cercas altas da madeira mais forte que havia. Impenetrável, como um
forte indígena.
O
que poderia estar esperando por ela após aquele escudo enorme de madeira? Se
aquele escudo não fora suficiente para protegê-la há pouco... Ela se imaginou
correndo dentro de um palácio, por longo tapete vermelho com espada brilhante
na mão, até que alcançava o trono e cravava a espada no rei malvado que ali
sentava. Ela se imaginou discursando para milhares de pessoas, seus súditos. E
também se imaginou caindo de um precipício para a escuridão que prosseguia
eternamente para baixo. Puxando-a. Clamando-a.
Matheus
havia lhe explicado corretamente, havia uma corrida pelo poder. Ela era a
garantia mais concreta desse poder. Viriam atrás dela então. E o que ela
deveria fazer?
Se
apenas ela pudesse voltar para casa, desejou por um segundo.
Mas,
porque a lembrança de sua mãe invadia seus pensamentos novamente, ela se
perguntou.
-
e se minha escolha fosse... Não fazer parte disso? – as palavras saíram para a
rua deserta àquela hora da noite. Ela fitou as estrelas do céu, esperando pela
resposta de Matheus.
Eles
cruzaram a pequena porta que havia no lado esquerdo do imenso portão, e não se
surpreenderam em encontrá-la destrancada. Do lado de fora, quase não havia luz,
apenas o resquício das luminárias no alto da muralha, mas não eram suficientes.
E
enquanto eles contornavam a imensa parede de madeira em direção a dois cavalos
marrons selados que se deliciavam com a grama presumivelmente verde do lado de
fora da cidade, a reposta de Matheus veio, não do jeito que esperava, mas calma
e peculiarmente amigável.
-
se é isso que deseja, é isso que deve fazer. – disse simples.
Ela
se surpreendeu.
-
serio? – perguntou - Você não iria entoar um discurso dizendo que eu sou a
única esperança de vocês, ou então ameaçar me entregar aos encapuzados?
Matheus se virou para ela,
mas no escuro Nayara não pode ver muito do rosto dele.
- Não sou seu pai, eu sou
seu amigo. – respondeu.
Então lhe deu as costas, e
alcançou os cavalos. Agilmente, montou em um, e olhou para ela.
- aquele é para você. –
gritou. – faça sua escolha.
E começou a cavalgar.
Nayara observou ele se
distanciar lentamente, cavalgando sob a luz cândida do luar que banhava toda a
planície a frente dela, até a linha do horizonte, que ficava atrás das
montanhas ao longe. O trotar do cavalo começou a se distanciar. Nayara olhou,
esperançosa, de volta para o portão de Samantha.
E então, chutando uma
pedra em seu caminho, correu para o ultimo cavalo.
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