Seus olhos
piscaram e se abriram.
Ele levantou
da areia manchada de sangue e segurou firme sua arma. Tentou correr, mas alguém
lhe segurou. Quatro homens de verde passaram na sua frente, e estrondos depois,
dois deles eram jogados ao chão, para nunca mais se levantarem.
Os enormes
barcos escuros atracavam na areia, as rampas desciam, soldados desembarcavam.
Muitos iam rastejando até algum lugar onde se escondiam. Pessoas gritavam,
tiros ecoavam, corpos caídos no chão eram pisoteados, e explosões eclodiam ao
redor.
Tentou se
refugiar atrás dos destroços de uma parede, mas ainda assim tiros passavam
próximos de seu corpo. Soldados corriam e tentavam se proteger. O jovem cadete
ao seu lado era atingido e caia no chão sangrando. Uma granada era arremessada
na sua direção. Dois segundos depois, ela explodia e um clarão tomava conta de
sua vista.
Suando, Jude
acordou ofegante.
O dia
amanhecera cinzento, como se fosse noite de inverno. Não estava frio, mas
estava quase escuro. O vento não fazia barulho, mas castigava as folhas da
arvores cruelmente. Se tivessem uma fogueira, as chamas estariam bruxuleando.
Jude
continuou sentado onde despertara, apenas observando ao seu redor enquanto
Phillip e Cínthia ainda repousavam. Os pesadelos de antigamente haviam voltado.
Ele não recuperara o sono após isso. Depois, quando Phillip e Cínthia
acordaram, os três recomeçaram a andar.
Seguindo por
uma estrada feita de pequenas pedras, eles caminharam por horas, novamente. A
paisagem quase não mudava, mantendo sempre o horizonte ao fim de uma longa e
lisa extensão de grama verde a esquerda deles. A direita erguia se uma enorme elevação
de terra, uma colina verde, com arvores no topo. Parecia a eles que a circundavam,
seguindo aquela estreita estrada.
Com os pés
doloridos, os corpos cansados, eles concordaram silenciosamente em descansar,
sem uma palavra sequer. Saíram da estrada e se sentaram alguns metros acima na
colina. A grama verde macia proporcionou um momento de descanso que eles
desfrutaram intensamente.
Cada um
olhando para o outro. Um sentimento de dizer algo, qualquer coisa, subia por
suas espinhas. Eles continuaram em silencio, mesmo notando que a hora era
propensa para descobertas e decisões. Logo, fome eles começaram a sentir fome
também.
- e o que
fazemos agora? – perguntou Cínthia.
- não
podemos ficar aqui muito tempo, só até a gente recuperar o fôlego. – disse Phillip.
- tem razão...
– respondeu Jude, sem olhar para ele. – então voltaremos pra estrada.
E eles
tinham um plano. Pelo menos, até a próxima meia hora.
- fome e
sono. – disse Cínthia, lentamente. – tem combinação melhor?
- durma um
pouco. Acordamos você. – assegurou Phillip.
- aqui. Use
isso. – Jude lhe arremessou sua jaqueta.
Ela agradeceu,
e se deitou na grama. Phillip se levantou de repente.
- você está
ouvindo isso? – perguntou.
Os três
silenciaram. Eles olharam em volta, analisando, procurando. Então eles ouviram.
Alguém correu próximo a eles, puderam ouvir seus passos na grama. Ninguém a
vista. Cínthia se levantou. Os três olhavam na direção de onde ouviram os
passos. Então alguém passou correndo atrás deles. Eles se viraram. Ainda
ninguém a vista.
- nem pense
em perguntar se tem alguém ai – censurou Jude, quando Phillip começou a ficar
tenso. Este lhe devolveu o olhar.
Os três
ficaram mais próximos, atentos ao redor, esperando por algo que não tinham
certeza do que era, mas que suspeitavam com certeza. Então algo passou zunindo
pela orelha de Cínthia. Ela gritou e se abaixou. Phillip viu de onde viera o
disparo, e deu um passo em frente, mas foi paralisado pelo que ouviu em
seguida. Um grito. Um grito ensurdecedor, grave, contínuo, que lhe arrepiou por
inteiro.
Jude o puxou
para o chão.
- não mate a
gente. – sussurrou.
De joelhos, ele
fez sinal para que Cínthia e Phillip o imitassem. E não precisaram esperar mais
do que alguns instantes após o fazerem.
Logo
apareceram varias pessoas de lugares que os três jamais considerariam como
esconderijos. Jude observou mais ou menos quinze homens descendo a colina em
direção a eles, enquanto outros poucos formavam um circulo ao redor dos três.
Eles usavam vestes simples, tons de amarelo e marrom, calças e camisas
compridas, algumas mais sujas que outras.
Cínthia
notou as espadas na cintura de cada um dos que os cercavam. Bem ao lado da
espada, alguns possuíam facas compridas, com uma tira de couro atravessava
diagonalmente o peito. Dois ou três tinham a mão apertando o cabo de suas
armas. Embora fizessem uma carranca intimidadora, se podia notar que não eram
de fato maléficos por natureza. Mais para uma elite de guarda, ou batedores de
um exercito.
- como não
os vimos antes? – perguntou Cínthia, em sussurros.
- eles devem
saber como não serem vistos – respondeu Phillip no mesmo tom. – sabem como não
serem ouvidos...
- aí vêm
mais perguntas! – interrompeu Jude, apontando com a cabeça.
Descendo a
colina, vinham dois homens. De longe, podia se notar que eram algum tipo de
autoridade entre os homens, tanto pelo jeito de se vestirem, quanto pela aura
de comando que emanavam. Suas roupas eram mais escuras que as dos outros
homens, quase pretas, e eles eram os únicos que usavam um chapéu. De feltro,
escuro como seus casacos.
Eles se
aproximaram, e interromperam sua conversa quando entraram no circulo que se
formava ao redor dos três jovens. O homem a direita se inclinou para o
companheiro e cochichou algo em seu ouvido. Os dois riram.
O que estava
a esquerda chegou bem perto de Jude, Cínthia e Phillip, que ainda estavam
imóveis de joelhos na grama. Quando o fez, puxou de algum lugar em suas costas
uma faca comprida, um pouco manchada, que fez um tinido no ar como se estivesse
cortando o vento.
Ele se
abaixou e examinou o rosto de Jude, tão próximo que Jude pôde sentir seu hálito
de bebida. Ele segurou pelo queixo do rapaz e examinou os lados de seu rosto.
Jude fechou os punhos com força, tentando se controlar para não arrancar a faca
da mão do homem e fazer um refém para fugir daquela situação. Mas seria
arriscado tentar aquilo, já que alguns dos homens possuíam arcos e flechas que
poderiam fazer um bom estrago.
O homem
estava agora examinando Phillip, já havia passado por Cínthia. Então ele ficou
ereto novamente e voltou para perto do seu amigo de chapéu. Disse algo em seu
ouvido e saiu andando colina acima. O líder que ficou examinou os três
reservadamente de cima a baixo, andando em volta deles. Após alguns segundos,
disse pensativo.
- ele tem
razão... – e então seus olhos faiscaram,
mas durou apenas um instante, o suficiente para não ser notado por ninguém.
Ordenou para os três – levantem-se, e venham comigo.
Jude,
Cínthia e Phillip se entreolharam. A ordem foi tão inesperada quanto seria uma
ordem para que os matassem. Mas por um lado, eles sentiram aliviados. Então se
levantaram lentamente, tentando não fazer nenhum tipo de gesto que seus
captores poderiam tomar por perigoso ou ameaçador. Caminhando devagar,
prestando atenção a sua volta, no rosto de cada um dos homens que agora
pareciam relaxados, conscientes da idéia de que seus próprios chefes não
consideravam os três jovens uma ameaça.
Atrás de
Jude, Cínthia e Phillip, os homens os seguiram ordenadamente, marchando em
fila.
- o que você
acha disso tudo? – perguntou Phillip à Cínthia, olhando veemente para trás.
- melhor
desse jeito do que amarrados e com a ponta de uma espada na nossa garganta. –
respondeu ela.
- tudo bem,
mas o que você acha que vai acontecer desta vez?
- olhe,
quando eu tentei prever os possíveis desfechos da ultima situação, eu não tive
muita sorte. Desta vez eu sinceramente espero que não tenha sorte também. –
disse, alarmada.
Phillip não
respondeu, pensativo. Passou a observar onde os dois homens de chapéu os
levavam. Jude estava a alguns passos à frente, andando apressado, tentando
alcançar algum deles. Havia esquecido sua jaqueta, Phillip notou, e ao olhar
para trás, não viu nenhum dos homens a trazendo. Jude estava apenas com uma
camisa verde, um pouco suja nas costas. Phillip olhou para si mesmo. Suas
roupas estavam sujas também. Sua blusa azul manchada de terra, e algo que
pensou por um momento ser sangue. Seus jeans azuis não apresentavam muito
estrago, o que o deixou momentaneamente feliz.
Cínthia
notou Phillip observando suas roupas, e olhou para as próprias. Seu suéter uma
vez fora branco, agora tinha folhas e pequenos pedaços de galhos presos.
Parecia que ela havia brigado com um arbusto. Os jeans escuros estavam sujos
também, mas não aparentavam, apenas pela leve camada de poeira da estrada na
qual passaram maior parte do dia.
Ela olhou
para trás e flagrou um dos soldados olhando-a atravessado. Examinando-a. Ela
comparou suas roupas com as dele e se deu conta do motivo de serem tratados
desse jeito. Ela se sentiu extremamente deslocada naquele momento.
O terreno
íngreme não lhes ajudava, e a escalada foi árdua. Jude se mantinha adiantado em
relação a Phillip e Cínthia. Tinha esperança de conseguir descobrir algo com os
homens de chapéu. Estes andavam rápido e pareciam não ter problema algum em
andar num terreno com um ângulo de quase sessenta graus de elevação.
Quando os
dois pararam em determinado ponto, Jude conseguiu alcançá-los. Ao que ia lhe
dirigir a palavra, Jude olhou para trás. Ou melhor, para baixo. O pequeno lugar
onde Phillip, Cínthia e ele haviam parado para descansar estava há muitos,
muitos quilômetros abaixo.
- mas que
mer- tentou dizer, mas foi interrompido.
- quinze
minutos, apenas. – disse um dos homens de chapéu. Sua voz era grave, e
confiante. Voz de um comandante nato e excelente combatente.
Jude se
virou. Notou que agora eles estavam parados bem no pico do topo daquela, agora
considerava uma, montanha. Sua expressão de “mas-que-diabos!?” denunciava e
fazia todas as perguntas que passavam por sua mente naquela hora. O homem tirou
o chapéu por um segundo, passou a mão pelo cabelo liso e curto e recolocou o
chapéu. Sua voz soou pastosa.
- nomes são
para amigos, então não precisamos deles agora – disse, acenando com cabeça,
dispensando quaisquer apresentações – seus olhos não puderam ver o que você
esteve fazendo esta tarde toda, mas agora, aqui, longe da ilusão, você pode
tomar conhecimento.
Cínthia e
Phillip alcançaram o cume da montanha e se juntaram a Jude. Jude olhou para
baixo novamente. Para a estrada em que estivera andando com os dois. E se
chocou ao notar que ela circundava a montanha que eles se encontravam agora.
Formava um circulo perfeito, um circulo que os três passaram horas e horas
andando e andando. Cínthia levou as mãos à cabeça.
- em
círculos – disse, descrente. – a elipse é tão grande que não percebemos que era
uma curva. Assim como...
-... A
circunferência da Terra. – completou Jude, também desnorteado.
Phillip se
virou para o homem de chapéu.
- e essa
montanha? – perguntou, angustiado.
- mera
ilusão. – respondeu inocentemente o homem – nada que não poderia ser evitado se
tivessem o cuidado de olhar com atenção.
Naquele
momento Phillip teve vontade de acertar um murro no rosto dele.
- aqui, -
disse, se virando – vou mostrar a vocês.
Ele apontou
para o horizonte, a extensa planície de terra verde do outro lado da estrada.
Mesmo de longe, era como se os cinco pudessem ver o vento balançando a grama
alta, no chão. A grama parecia viva, para lá e para cá, dançando ao vento sem
sair do lugar.
Então aquela
visão embaçou. Jude, Cínthia e Phillip se assustaram. Era como se o horizonte
estivesse saindo e entrando em foco. Logo, o horizonte sumia, e então aparecia
de volta.
- olhem com
mais atenção. – disse o homem de chapéu que ficaram em silencio até agora – com
mais vontade.
Os três
obedeceram. Olharam com o intuito de ver através do plano. Através da ilusão.
Ver claramente. Descobririam mais tarde que aquele era o segredo: Desejar ver.
Então, de um
segundo para o outro, a planície verde que parecia viva se mexendo ao vento
desapareceu. A cor daquela paisagem sumiu, dando lugar a verdadeira imagem que
eles estavam contemplando o tempo todo.
Montanhas e
mais montanhas de terra enegrecida, queimadas, mortas. O solo de pedra
chamuscada, pequenas chiados vindo do terreno, brasas ainda soltando baforadas
de fumaça. Ruínas destruídas, outrora templos de alguma coisa em seus dias de
gloria. Em alguns lugares, membros humanos, ossos jogados por todos os lados.
Claramente restos mortais de muitas pessoas em todo lugar. Alguns carbonizados.
O próprio ar tinha cheiro de cinzas agora.
Os três
olharam em volta, apenas para notar que estava em todo lugar. O próprio chão
que pisavam havia se transformado. Cínthia tapou a boca com as mãos, enojada
pelo odor de morte que agora sentia. O sol havia diminuído sua luz, e eles viram
que o céu estava vermelho, apenas o horizonte continuava azul, divido por uma
cadeia de montanhas não tão distantes quanto parecia.
- meu Deus...
– exclamou.
- Deus? –
perguntou irritado o homem de chapéu que lhes ensinara como olhar – os deuses
esqueceram esse lugar.
E se afastou
em direção aos seus homens, chutando, onde passou, pedaço de algo que nenhum
dos três queria descobrir o que era.
- o que
houve aqui? – Cínthia conseguiu perguntar.
- bem, eu
poderia contar, - começou o homem de chapéu – mas acho que seria melhor se
vocês comessem algo antes.
O pensamento
desviou a mente dos três jovens da paisagem arruinada e os fez focar na
situação novamente. Eles estavam famintos. Era como se o estômago de cada um
deles roncasse alto quando ouviram a idéia. Tentaram ser discretos, entretanto.
Mas foi preciso apenas um vislumbre do brilho que perpassou os olhos dos três
para o homem de chapéu notar como lhes agradava tal pensamento.
O outro homem que usava chapéu se juntava a
eles, trazendo um dos seus homens consigo. Ele atirou uma mochila aos pés dos
três jovens, e começou a descer o outro lado da montanha, cuidadosamente.
Phillip abriu a mochila apenas para encontrar comida dentro. Algumas barras de
chocolate, cantis de água, frutas e alguns pedaços de pão. Os três, famintos,
fizeram uma refeição improvisada, até que seus estômagos pararam de roncar e o
cansaço sumisse aos poucos. Logo, eles estavam acompanhando o resto dos homens
montanha abaixo.
O terreno
era perigoso, escorregadio, trapaceiro. Tentaram avançar com o máximo de
cuidado possível, sempre seguindo as dicas dos homens de chapéu. Duas vezes
Jude vislumbrou o verde ao seu redor, sempre tendo que parar de andar e
respirar fundo para enxergar claramente de novo.
Horas mais
tarde, a mera lembrança do que os três viram era suficiente para lhe dar uma
sensação ruim no estomago. Phillip e Cínthia andavam em silencio, e dessa vez
Jude andava atrás deles. Cada linha de pensamento que passava por suas mentes
era tão pessoal que eles não se atreviam a repetir em voz alta O cenário agora
era um solo marrom de terra. Duro, com pontiagudas pedras brotando do chão. Era
um vale profundo, isolado por dois penhascos que se estendiam ao longo do
trecho, formando duas paredes de rochas. Era como se estivessem num canyon de
menor porte.
O solo, tão
sólido, não deixava para trás marca alguma de pegadas.
Marchando
normalmente, os homens que seguiam os dois de chapéu conversavam entre si,
embora nem Jude, Cínthia ou Phillip conseguisse entender uma palavra. Quando os
soldados olhavam ao redor, os três jovens notavam as expressões nos rostos, nos
olhares. Mas os três não tinham o menor desejo de perguntar. Iriam esperar pela
hora que eles decidissem contar algo.
- chegamos.
– avisou repentinamente, para todos, um dos homens de chapéu, apontando para
alguma coisa na parede rochosa à esquerda.
Houve um
murmúrio de contentamento entre os homens atrás dos jovens, e eles logo
apressaram o passo. Phillip, Jude e Cínthia se apressaram para ver o que o
homem estava apontando. Eles viram os dois homens de chapéu apalpando a parede
vermelha atentamente, até que eles encontraram algo, e deram um puxão forte. E
ali na parede, se formou uma escada de mão, feita de pedra.
Ela subia
até o alto da parede montanhosa. Os soldados começaram a subir sem hesitar,
demonstrando que faziam isso muitas vezes. Um atrás do outros, fazendo suas
espadas e equipamentos tilintarem ao levantarem as pernas para alcançar outro
degrau. Ao que restavam apenas os três jovens e o homem que lhes dera a bolsa
com comida, ele colocou a mão na escada e subiu um degrau. Olhou para trás,
para Cínthia, Phillip e Jude, e perguntou:
- o que
estão esperando?
Ele o disse
ostentando um sorriso no canto da boca, certamente estava se divertindo na
duvida e surpresa dos três. Sem esperar uma resposta, ele lhes virou as costas e
começou a subir.
Os três se
entreolharam. Phillip deu de ombros e começou a subir a escada. Jude seguiu
logo atrás. Mas Cínthia sentiu um calafrio subindo sua espinha. Ela olhou em
volta, a procura, e não encontrou nada. Sabendo afinal o que fora aquilo, ela
respirou fundo e começou a subir atrás de Jude, se perguntando coisas das quais
ela sabia que jamais encontraria as respostas.
L
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