-... Meu pai? - exclamou Nayara de repente, assustada.
Estivera ouvindo atentamente a historia de Matheus, mas até
aquele momento, não refletira muito sobre ela. A menção de seu pai, porem,
chamou-lhe a atenção. Jamais o conhecera, jamais tivera qualquer informação
sobre ele a não ser aquilo que sua mãe lhe havia contado. O que não era muita
coisa.
- sim, seu pai. – Matheus confirmou.
Agora isento de sua barba falsa e sua peruca, jogados em um
canto ao lado do cajado que segurava. Sua barba estava um pouco mais comprida
desde que aceitara a missão de Wes, e sua expressão parecia ainda mais cansada.
Não estava tão velho quanto seu disfarce lhe proporcionava ser, mas ainda assim
sua idade era avançada comparada aos feiticeiros que tivera de enfrentar.
O pequeno truque de magia que Wes lhe ensinara o serviu bem,
embora ele estivesse mais cansado do que estaria se tivesse lutado com cada um
deles com suas próprias mãos. O preço da magia, ele lembrou.
Os corpos de Getulio e dos dois soldados não estavam mais a
vista, Matheus os havia carregado para dentro do pequeno aposento nos fundos
daquela capela, e lá permaneciam escondidos. Os destroços de madeiras dos
bancos, porem, ainda estavam espalhados pelo chão, e Nayara desviava de cada um
enquanto andava para lá e para cá, pensativa.
- então – finalmente ela disse – você está dizendo que eu sou
herdeira do trono, porque meu pai era o rei de vocês, mas ele esta morto agora,
ou seja, eu sou órfã de pai.
- correto – assentiu Matheus com um pesar no coração – e você
esteve todo esse tempo que cresceu, vivendo num mundo que não é este.
Nayara sorria debilmente enquanto Matheus falava, como se
achasse que aquele homem estava quase senil e falando bobagens. Seus olhos
estavam arregalados, surpresos com a certeza dele ao falar.
- e tudo isso quer dizer que eu vou ser rainha “deste” mundo um
dia? – ela perguntou, ainda sorrindo – e que eu vou governar um reino inteiro?
Matheus baixou a cabeça, e suspirou baixinho. Levaria mais tempo
que ele supôs para fazê-la acreditar em suas palavras.
- Nayara, você não
compreende o quão serio isto é. Não compreende o quão importante você é.
- é você que não esta compreendendo, - disse ela, fazendo
desaparecer o sorriso em seu rosto – isso aqui, é tudo loucura. Eu estou sonhando,
só pode ser isso.
- após o que você viu agora há pouco, ainda suspeita que isso é
um sonho? A não ser que já tenha sonhado com algo assim antes, o que mostra que
em algum lugar de sua mente, você já sabia daqui.
Então ela levou as mãos à cabeça, fechou os olhos com força,
tentando fazer tudo desaparecer, tudo silenciar, tentando tomar controle de seu
sonho, embora ela ainda tivesse aquele pequeno arrepio em sua espinha lhe
dizendo, lhe dizendo que não daria certo. Então ela os abriu de repente e sua
expressão murchou quando ela viu que o ambiente não mudara, e que Matheus ainda
estava parado no mesmo lugar a observando.
- ainda aqui? – ela perguntou.
- ainda aqui.
Nayara correu os olhos pela sala, então fitou a porta atrás de
si, e novamente fitou o teto. Milhares de pensamentos, e idéias, e perguntas
figuravam em sua mente naquela hora, e cada uma parecia mais absurda que a
outra.
- não é um sonho? – perguntou, levantando a sobrancelha.
- não é um sonho.
Ela mordeu o lábio, apreensiva. Por um lado, se tudo aquilo
fosse real, então o mundo que ela sempre julgou conhecer nunca fora mais que
uma pequena parcela de algo maior, muito maior. Tal pensamento a apavorava.
- você não precisa ter medo – Matheus disse suavemente, e ela o
encarou. – você estar aqui é ordem
natural das coisas.
- você está falando de destino? – Nayara perguntou descrente. –
eu não acredito em destino.
Matheus levantou a sobrancelha.
- não acredita em destino... – ele repetiu – e por que?
- porque eu prefiro acreditar que eu posso fazer o que quero com
minha vida.
Ele se levantou, e se aproximou dela. Nayara recuou lentamente,
encarando-o. Os olhos azuis a perfuravam, embora seu olhar fosse mais paternal
do que apreensivo.
- eu ouvi seu pai dizer as mesmas palavras certa vez – ele disse
– ele acreditava tanto nelas que... – então silenciou. Memórias de seu velho
amigo vieram a sua mente, agora ilustradas pelo rosto de sua filha. Pela
primeira vez desde que sua família fora levada, Matheus sorriu. Aquele sorriso
durou apenas instantes, mas foram o suficiente para Nayara perceber.
Ela tentou imaginar como ele era. Como seu pai era. Sua atitude,
o som de sua voz, o seu rosto. Como ele andava ou como ele ria. Jamais o
conhecera, e sua mãe jamais falava dele. Não que nunca houvesse perguntado. A
única coisa que ela lhe falou, era que ele foi um bom homem com quem o destino
não fora gentil. Nayara nunca se perguntou o que aquilo significava.
- vocês eram amigos? – ela perguntou, lentamente.
- sim, nos éramos.
- muito próximos?
- o bastante para sentir sua falta quando morreu.
- como ele era?
- justo e gentil, um amigo em milhões.
- como ele morreu?
Eles se encaram por alguns segundos. Até que finalmente ele
falou.
- por minha culpa.
Ambos perpetuaram o silencio. Nayara, porque sentiu na resposta
de Matheus a tristeza que ele não queria ter demonstrado. Por muito tempo, a
culpa da morte de Frederic era sua. E tantos anos acreditando fizeram-no
aceitar que era. Isso já não o incomodava, até o momento em que teve que
dizê-lo em voz alta para a própria filha de Frederic.
- por que você se culpa? – ela perguntou no mesmo tom de voz
anterior.
Ele não a respondeu logo. Ele refletiu por instantes. Aquelas
perguntas seria um sinal de que ela estava se interessando? Seria um sinal de
que ela estava acreditando?
- ele é meu pai, não? Eu quero saber – disse ela tão confiante,
e Matheus sentiu que ela podia estar lendo sua mente através de sua expressão.
Ele fechou suas mãos com força, fazendo as veias azuladas destacaram em seu
punho, e se preparou para reviver suas memórias.
Ele contou a ela sobre o fatídico dia em Itsumo, e sobre o que
acontecera depois. Como Halana havia sumido repentinamente, e a facilidade com
que os Quatro Irmãos haviam tomado controle do governo, uma vez que não havia
mais nenhum membro da linhagem real para reclamar o trono e impedi-los.
Seguindo a linha de acontecimentos, contou sobre como os anos se arrastaram em
Coda, um após o outro, liderados pela mão-de-ferro do governo e ilustrados por
batalhas, sangue e morte.
Sua historia se estendeu noite adentro, e Nayara ouviu tudo
interessadamente. Para ela, aquilo estava cada hora mais longe de ser apenas
uma historia. Ela fez algumas perguntas, mas a maior parte do tempo ouviu
atentamente. E compreendeu a tudo.
Ele ocultou o chamado que recebera do Império, e o rapto de sua
família, mas contou sobre o encontro com Wes, e sobre os boatos que haviam
surgido acerca de sua presença.
-... então, eu estive esperando por você aqui desde então. –
Matheus terminou.
- e você acha que eu vou poder retomar o trono deles, já que eu
sou descendente da realeza... – disse Nayara, levantando a sobrancelha. – mas,
em primeiro lugar, como eu faria isso?
- cruzaremos essa linha quando chegarmos nela – respondeu
Matheus indiferente. – o essencial agora é que você entenda e aceite o que você
é, ou então nada dará certo daqui para frente.
Nayara pensou e pensou, então achou outra brecha para duvidar.
- e se eu realmente conseguir tomar novamente esse trono, então
o que? – perguntou ela – vou ficar aqui e reinar? Não vou poder voltar para
casa?
- quando você for rainha, nada poderá impedi-la de fazer o que
quiser – Matheus a tranqüilizou, embora tivesse certeza de que, no fundo, ela
não desejaria voltar para casa quando tudo acabasse por bem ou mesmo por mal.
Nayara então relaxou um pouco. Mantendo o olhar fixo no azul dos
olhos de Matheus, ponderando sobre o que devia fazer. Aceitar o que ele estava
dizendo poderia ter conseqüências drásticas no futuro, e se não aceitasse,
talvez não pudesse voltar para casa.
Antes que decidisse fazer algo, a porta dupla no fim do salão
onde estavam se abriu suavemente, mas ainda assim provocou um sobressalto em
Nayara. Matheus deu um passo a frente ao encontro de Wes, que andava na direção
deles pelo chão de pedra, despindo um longo casaco marrom, e espanando com a
mão a poeira de suas vestes cor bege.
Ao chegar perto, ele olhou para Nayara e prontamente curvou-se,
exclamando orgulhoso e com um sorriso.
- Alteza, seja bem vinda mais uma vez entre nós. – disse ele –
embora a última vez que esteve aqui era tão pequenina que suponho, nem
lembrar-se dela o faz.
Nayara ficou aborrecida por ele se referir tão formalmente
assim, até aquele momento não havia lhe agradado nem um pouco clamarem-na
rainha. Entretanto, ser uma rainha, tal como eles descrevem, ainda com todos os
perigos, era uma possibilidade maravilhosa. Talvez isso a acalmasse, ou talvez
isso a preocupasse ainda mais.
Mas ela nunca se perguntou porque aceitou.
- chega de bajulação, Wes – intrometeu-se Matheus. – o que você
descobriu?
- precisamos conversar, - disse ele apreensivo, lançando um
olhar de soslaio para Nayara – vamos lá fora um segundo.
Matheus levantou as sobrancelhas, decididamente aquele era um
assunto que implicava a segurança de Nayara. Ele concordou com um aceno, e se
virou para a jovem.
- você deve estar precisando de um tempo – disse, gentil porem
firmemente – para processar todas essas informações.
Nayara prendeu a respiração enquanto ele falava, talvez apenas
para se acalmar. Wes se aproximou.
- vamos lhe deixar sozinha com você mesma por alguns minutos, ó
princesa – disse ele, dando ênfase na denominação “princesa”. Nayara o encarou
com raiva. – Medite, e certifique-se de escolher corretamente sobre o que fazer
a seguir.
As suas palavras foram repreensivas, mas recheadas de gentileza,
como um aviso disfarçado de ameaça. Ele piscou para ela, e se afastou a passos
largos em direção a porta dupla por onde entrara pouco antes.
- não se preocupe, - Matheus a tranqüilizou, lançando a ela um
olhar paternal. – a sua escolha será a correta, não importa qual seja.
Ela concordou com a cabeça e ele também a deixou, para se juntar
a Wes lá fora. A porta bateu com um estrondo leve quando ele passou por ela, e
a jovem estava então sozinha novamente.
Nayara passou as mãos pelo rosto, tentando conciliar o que
descobrira com o que já sabia, e o que devia fazer, com o que já havia feito.
Ela correu os olhos pelo salão, para se distrair, para se acalmar. A noite já
se instalara lá fora, mas as velas ali dentro estavam acesas há muito tempo.
Ela procurava, nas sombras das colunas, nas fileiras dos bancos, no calor das
chamas, uma prova de que era tudo de verdade. Uma prova, que há muito ela já
tinha.
Ruídos chamaram sua atenção de repente, e assustada, ela
procurou em volta a origem do barulho. Ela se levantou e andou alguns passos,
ainda à procura. Aliviou sua tensão quando viu que era apenas um pássaro negro,
semelhante a um corvo, talvez o fosse, ela não conseguiu distinguir,
empoleirado no batente de uma janela de vidro. A janela ia do chão até a metade
da altura da parede, e então outra janela igual alcançava o teto. Oculta
anteriormente pela cortina, agora Nayara podia visualizá-la de sua posição.
Ela se aproximou, e o pássaro a observou chegar perto.
Cautelosa, ela estendeu a mão, no intuito de alcançar o pássaro. O pássaro,
embora negro, era muito mais bonito que um corvo. Nayara não pôde evitar querer
tocá-lo. Mas ao tentar fazê-lo, o pássaro deu-lhe as costas e voou para longe,
desaparecendo no céu noturno.
Nayara observou o lugar onde o pássaro se fundiu com a escuridão
do céu, pensativa, refletindo sobre varias coisas, e uma pequena queimação
começava a crescer dentro dela. Outro tipo de sensação se apoderou pouco a
pouco de seu corpo e mente.
A janela estava aberta para o mundo lá fora, e isso dava a
Nayara uma idéia...
Lá fora, naquela noite escura, em frente à igreja de pedra que
agora era iluminada por tochas nos archotes, dois homens conversavam. A rua
estava silenciosa, e suas sombras eram suas únicas companheiras. Os dois tinham
pesar em suas palavras, e ambos não desejavam estarem conversando sobre aquele
assunto. Wes fitou Matheus sob a luz das chamas.
-... Kidzukenakatta. Era no mínimo um regimento inteiro. –
concluiu ele.
Matheus refletiu por alguns segundos.
- e por quanto tempo eles vão ficar lá?
- tempo suficiente. Isso nos dá varias opções - uma coruja piou
em algum lugar. Wes continuou. - Juliana estava lá quando chegaram. Ela viu
Mila, e sua filha também.
O rosto de Matheus se iluminou, mas logo a expressão fechada
retomou seu lugar.
- Kidzukenakatta não faz parte do Império. Por que eles se
arriscariam tão desprotegidos assim? – perguntou. – A Resistência, e até mesmo
a Divisão tem muitos espiões naquela cidade.
- Creio na idéia que ele espera que você vá atrás delas. Você, e
mais ninguém. - Wes respondeu pensativo – não consigo pensar em outro motivo
para elas não terem sido levadas diretamente a capital. O que a Resistência e a
Divisão iriam querer com duas mulheres normais, afinal?
- o que você acha que eu devo fazer? – perguntou Matheus.
Wes levantou a sobrancelha.
- lutar contra qualquer um que aparecer na sua frente para
chegar até elas. - ele brincou – e não deixar vivo nenhum homem, mulher ou
criança que possa um dia carregar uma espada.
Matheus arregalou os olhos.
- seria melhor contatarmos alguém antes de irmos para lá. –
disse, ignorando totalmente o comentário anterior – a cidade fica a uns quatro
dias daqui.
- e quanto a nossa
pretendente a rainha aqui? – perguntou Wes, irônico – o que vamos fazer com
ela, senhor determinação-em-pessoa?
Com essa pergunta, Matheus se afastou pensativo, e foi observar
a extensão da rua à frente deles, deserta naquele momento. Ele prometera a si
mesmo que não deixaria sua família nas garras do Império tempo maior que o
necessário. Ele poderia ir até Kidzukenakatta e resgatá-las, mas isso poderia
por em risco outras coisas tão importantes quanto sua família. Respirou fundo e
expôs sua idéia a Wes.
- você pode levá-la com você.
Desta vez foi Wes quem levantou a sobrancelha.
- levá-la comigo - ele repetiu – e para onde?
- para Ninris Lunxus.
Wes abriu a boca para dizer algo, mas silenciou em seguida.
Ninris Lumxus, túmulo antigo de várias gerações Reais, era
perigoso demais para Nayara. Situado longe o suficiente para que a viagem
levasse semanas, Nayara não estava pronta ainda para ir para lá. Embora aquele
fosse um destino inevitável na jornada da garota, o homem queria adiá-lo ao
máximo.
- Aquela tumba está cheia de monstros. – argumentou ele – os
espectros de areia reclamaram aquele mausoléu há muito tempo. Nenhum de nós
conseguiria sobreviver lá. Não ainda.
- cedo ou tarde teremos que ir lá, Wes. É o único lugar onde
ainda existe qualquer vestígio da linhagem real. O único lugar onde ela poderá
encontrar algo que prove ela ser a herdeira.
- iremos lá somente após o treinamento dela. Não há o que
discutir.
Com aquela resposta, ambos ficaram em silencio. Matheus passou a
observar novamente a rua, e se deu conta que jamais havia presenciado uma noite
tão silenciosa em Samantha.
Ao olhar em volta e não notar uma alma viva, ele se deu conta de
que havia alguma coisa, alguma coisa mínima, porém errada. Wes se juntou a ele,
então ambos caminharam até o meio da estrada, olhando para um lado e para o
outro. Matheus cutucou o amigo, e apontou para mostrá-lo.
Lá, no fim da rua, uma pequena rajada de vento vinha se
fortalecendo, pouco a pouco, em direção a eles. O ventou uivava na noite
escura, e levava com ele folhas verdes e papeis do chão. Não uma rajada de vento comum, mas algo que
eles sentiram ser... Maligno. A noite começou a esfriar.
Eles se entreolharam, e voltaram correndo para dentro. Após a
porta bater atrás deles, eles se deparam com o salão vazio. Nayara não estava
mais lá.
A
rua parecia enevoada.
A
garota não sentia nada alem do próprio desejo de fugir e sobreviver. Corria em
intervalos, sempre a olhar para trás. Sentia que havia alguém a observando, mas
não enxergava ninguém. Dobrava esquinas a bel-prazer, sem imaginar onde seus
pés a levariam.
Parte
de sua consciência a castigava, pela loucura de se aventurar solitária à noite,
e a outra parte argumentava com o fato de que ela estaria melhor sozinha.
Ela
virou a esquerda numa rua larga, e correu até o fim dela. Então percebeu que se encontrava em uma
encruzilhada. Não havia moradas por perto para que ela pudesse chamar par
ajuda, mas de que adiantaria? Ela parou, respirou fundo e analisou os caminhos
que poderia seguir, ainda que não tivesse certeza de onde desejava ir.
Sentiu
uma pontada de frio repentina, e massageou seus braços para esquentá-los. Perguntou-se onde estariam suas roupas.
Aquela blusa branca e fina não estava lhe aquecendo nem um pouco. Então ela
ouviu seu nome, distante. Alguém estava procurando por ela, e não havia duvida
de quem era.
A
neblina havia aumentado consideravelmente desde que fugira, e ela não havia
notado. Agora, ela não poderia sequer dar-se conta de que estava em uma
encruzilhada. O vento ainda uivava, e dava a ela arrepios. A noite escura se
estendia, deixando sua situação mais perigosa ainda.
O
ápice de seus temores foi atingido quando ela deu um passo e se viu encarando
alguém, uma sombra erguida do chão, alguns metros a sua frente.
O
susto fora discreto, mas não pequeno. Nayara sentiu o coração palpitar quase
para fora do peito. Olhando para os lados a procura de qualquer coisa, ela não
viu ninguém. Ninguém mais. E pensou, por quanto tempo o vulto estava ali,
parado, observando-a?
Uma
figura solitária, parada no meio da rua, imóvel. Vestindo o que Nayara pode
identificar como uma longa capa negra, e um capuz, já que o formato de sua
cabeça era incomum. A neblina, a nevoa, impossibilitava Nayara de ver alem
dela, ou mais distante para qualquer lado.
Se
ela tentasse correr, Nayara pensou, será que a figura a alcançaria? Será que
seria poderia ser rápida o suficiente para despistá-la? Era impossível quem
quer que fosse ali embaixo do capuz, pudesse estar enxergando melhor que
Nayara, ela pensou.
Então
ela ouviu novamente seu nome.
Ainda
alguém procurava por ela. O vulto de capuz também ouviu, e em algum lugar
embaixo do capuz seus olhos observaram o lado de onde o chamado viera.
Inquietou-se após notar que a voz estava mais próxima do que da primeira vez.
A
vontade de Nayara gritar para dar um sinal de onde se encontrava desceu com
dificuldade por sua garganta. A figura voltou sua atenção novamente para ela.
Nayara recuou para trás, quase tropeçando em seus próprios pés. O vulto
avançou.
Fantasmagórico,
através da nevoa ele parecia flutuar. Ao ritmo que Nayara se afastava, ele se
aproximava, erguendo suas mãos no ar em direção a ela. “Se ao menos eu pudesse
enxergar alem de meu nariz, nessa neblina toda”, desejou.
Suas
costas então se chocaram contra algo rígido, ao que ela viu ser uma parede,
alguns centímetros mais alta que ela. Ela enterrou com força os dedos nas
pedras da parede, assistindo lentamente a figura se aproximar mais em mais. Ela
já podia ouvir a respiração dele. Suas mãos poderiam alcançá-la já, mas ele
continuou avançando, e ela percebeu que já havia visto alguém como ele, quando
chegou mais perto. Nayara tinha o olhar vidrado, tomado pelo pavor.
Então
como se seu sangue estivesse borbulhando, como se o seu medo tivesse
transformado em energia e estivesse percorrendo seu corpo, fazendo com que seus
pés e suas mãos formigassem, ela o viu saltar em sua direção. Ela pulou para
cima no mesmo instante.
Nayara
o ouviu gritar e cair contra a parede, enquanto ela dava uma volta no ar e
aterrissava levemente no chão, bem atrás dele. Arfando, amedrontada, extasiada
e surpresa pelo que acabara de realizar, ela fitou o homem comum, agora de
carne e osso, estirado no chão.
A
névoa, que ainda serpenteava no ar, diminuiu precariamente. Embora a
encruzilhada ainda estivesse às cegas pela escuridão. Nayara respirou fundo e
fechou os olhos. Alguém gritou novamente nas proximidades. Agora aliviada,
Nayara sorriu, embora ninguém pudesse ver. Ela deu as costas para o vulto no
chão, e começou a correr na direção da voz, suas dúvidas e medos anteriores
apagados pelos repentinos acontecimentos.
Ainda,
ela não pode chegar longe, pois a mesma situação se repetia.
Outros
três vultos sombrios apareciam a sua frente.
-
o que vocês querem? – ela urrou, em desespero.
Não
ouve resposta, embora um sussurro ecoasse na noite, e ela poderia jurar que
dizia: “você, há muito tempo”.
Desta
vez, completamente sem saída, Nayara continuou parada, impassível. A vontade de
destruir aquelas três figuras a sua frente passou por seu corpo, arrepiando-a.
Seu sangue voltou a ferver e a única coisa que ela conseguia sentir era raiva.
-
bom, venham me pegar. – ela desafiou, e ela se deu conta que as palavras saíram
sem seu comando.
Os
vultos não se entreolharam, embora Nayara sentisse as pálpebras deles
examinando o ambiente em volta. Era como se ela soubesse o que iriam fazer, mas
não previu que eles desembainhariam cada um uma longa espada. O zunido não a
incomodou, embora devesse deixá-la em pânico. Ela continuou parada, mesmo
quando eles avançaram lentamente, lentamente em sua direção. As espadas
apontando para cima, dando a eles erradamente o aspecto mais terrível que lhes
podia ser atribuído.
Calma
estava apenas por saber o que eles queriam. Eles não pretendiam matá-la, ela
tinha certeza. Queriam a mesma coisa que Getulio queria. Levá-la para algum
lugar. Era o que a tranqüilizava.
Eles
estavam mais perto agora.
Um
deles virou-se, algo às suas costas chamou-lhe a atenção. Ele deixou seus
companheiros e desapareceu na névoa.
Um
grito. Um urro. O som de metal chocando com metal. Outro urro. Os outros dois
vultos correndo para junto do companheiro. Uma mão no ombro de Nayara. O
constante som de metal chocando em metal novamente. Outro grito. Palavras
gritadas também. Nayara olhou para o lado.
-
Jamais faça isso novamente. – Wes sussurrou severamente, olhando para o lugar
onde as figuras desapareceram. Ela balançou a cabeça, positivamente, em
resposta.
O
som da briga ainda chegava ao ouvido deles. Wes a segurou pelo braço e puxou
consigo, no intuito de afastá-la, mas Nayara desvencilhou-se da mão dele e
correu na direção da luta.
-
pegue a garota! – uma voz grave gritou em algum lugar, no meio da neblina.
Nayara a ouviu, e continuou correndo, parecia
que estavam lutando tão distante dela propositalmente. Wes a seguiu, chamando
por seu nome.
Entre
a espessa neblina, uma das figuras surgiu cambaleante. Apoiando sua espada no
chão para conseguir andar, ela encarou Nayara. Seu capuz estava jogado para
trás e ela pode ver o rosto do homem que estava por baixo. Sangue escorria do
canto da boca, o supercílio também sangrava e sua barba negra agora estava
vermelha. Os olhos do homem brilharam ao fita-lá.
Mas
a expressão dele foi o que a paralisou. Ele a olhava como se ela fosse um raio
de sol após semanas de tempestade. O brilho nos olhos dele era tranqüilo, e era
feliz. Ele estendeu a mão para alcançá-la, mexendo os lábios, balbuciando
palavras inaudíveis. Ele não parecia querer machucá-la.
Ela
parou de correr também o encarou. Wes gritou e ela sentiu alguma coisa lhe
eriçar as orelhas, e viu o homem a sua frente ser levado violentamente para
trás por uma força invisível. O muro metros atrás dele explodiu em pedaços
quando ele se chocou e deslizou desacordado para o chão, onde permaneceu sem se
mover mais. Nayara olhou para trás, viu
Wes parado, ainda com o braço estendido. Ele fitava o homem caído perto do
muro, o olhar vidrado. Então notou que ela o observava e se recompôs, piscando
varias vezes ao olhar para os lados. Mas ele não se mexeu, nem quando ela se
afastou. A garota o ignorou por um segundo e se virou para onde sabia que
Matheus ainda estava lutando.
Ao
chegar mais perto, a neblina não mais a impediu de ver o que estava
acontecendo. Havia um, dos três encapuzados, caído no chão, presumivelmente
derrotado. Matheus duelava com o ultimo que restava. O tinido agudo da luta não
a incomodava mais.
Matheus
lutava agilmente, mas seus golpes eram sempre bloqueados pelo seu adversário.
Ele girou e deixou a espada paralela ao corpo, segurando firme o punho para
aparar o golpe horizontal de Matheus em direção a suas costelas, e então chutou
o estomago dele com o pé, jogando Matheus para trás. No terceiro passo, Matheus
conseguiu se recompor, apenas para ver seu adversário avançando em sua direção,
a espada diretamente apontada para seu coração.
Conseguira
desviar para o lado no ultimo segundo, fazendo com que a espada estocasse
apenas o ar, e então foi sua vez de contra-atacar. Mirando no ombro dele,
Matheus girou a espada por cima de sua cabeça, e suspirou de decepção quando
fora bloqueado. Ainda tentou mais três vezes atingi-lo, girando para esquerda e
direita, trocando a espada de mão, apunhalando e atingindo apenas o ar ou o fio
da outra espada. Sem sucesso.
Matheus
estava ficando cansado, mas não podia parar de lutar. Ele percebeu, quando
rebatera um golpe ao seu pescoço, Nayara se aproximando. Perguntou-se por um
segundo onde estaria Wes. Mas a pergunta foi varrida de sua mente pelo impacto
de sua espada contra a carne de seu adversário. Finalmente, ele conseguira
atingi-lo. O homem encapuzado recuou, mancando, segurando a coxa direita,
manchando sua mão de sangue, negro à precária luz. Aproveitando o momento de
dor de seu adversário, Matheus atacou. As duas espadas novamente se encontraram
no ar, e ali ficaram. Presas entre os dois corpos, disparando faíscas no lugar
onde havia o atrito de uma na outra. E por segundos ali continuaram. Então o
homem encapuzado soltou uma das mãos do cabo, e três longas garras surgiram de
dentro de sua manga, projetadas de seu punho fechado. Brilhantes e afiadas, ele
lançou a mão ao ar, num rápido movimento, atingindo Matheus no rosto.
Sangue
respingou ao vento, Matheus pulou para trás, estancando com a mão os três
profundos cortes na sua bochecha, mas ainda segurando firme a espada com a
outra. Ele parou, arfando, e encarou seu inimigo, que fez o mesmo. Então os
dois olharam para Nayara, que assistia a tudo, paralisada a poucos metros. Mas
antes que eles pudessem fazer algo, passos ecoaram na neblina, e então surgiu
Wes ao lado dela. O homem encapuzado recuou alguns passos, vendo que não
poderia enfrentar o guerreiro e o feiticeiro ao mesmo tempo. Wes avançou em sua
direção, e Nayara deu dois passos para trás. Então o vulto de capuz ficou
ereto, e baixou a espada. Logo depois ele levou as mãos à cabeça e jogou para
trás o capuz. Atrás de duas pequenas lentes arredondadas, dois olhos
faiscaram.
Seu
cabelo era bem curto e louro, sua expressão cansada. Seu nariz sangrava e sua
boca estava arroxeada pelas pancadas do cabo da espada de Matheus. Um pouco de
sangue seco ainda restava em sua têmpora. Matheus relaxou um pouco onde estava,
o sangue já escorria pelo seu pescoço. Fitava o homem de óculos com os olhos
semicerrados, preparado para qualquer movimento dele.
E
ele apenas encarou Wes e Matheus, arfando, por segundos, até que se pronunciou.
-
vocês lutam por ela! – ele avisou, sua voz se arrastando pesadamente – vocês
ainda morrerão por ela. Não importa quais os planos que vocês tenham, não terão
sucesso.
Nayara
fitou Matheus, preocupada, que lhe devolveu o olhar. E então olhou para Wes,
que já a observava. Wes voltou a atenção ao homem. Deu um passo a frente, e
estalou os dedos.
-
vá embora. – ordenou. E o homem desapareceu. Como se nunca houvesse estado ali
antes.
Nesse
segundo onde o que se ouvia era o assovio do vento, Matheus desabou ao chão, e
Wes correu para socorrê-lo. Apoiando-se no ombro do amigo, Matheus reclamou.
-
estou ficando velho.
Wes
soltou uma gargalhada.
-
você ainda tem muitos anos pela frente até me alcançar.
-
alguns anos atrás, eu poderia dar cabo dos três, sozinho.
-
anos atrás você usava uma armadura e todos temiam seu nome, era por isso que
ganhava.
-
ah, cale a boca.
Logo
depois, Nayara andava lado a lado com Matheus, descendo uma larga rua em
direção a um enorme portão. A saída de Samantha, onde eles encontrariam cavalos
para irem embora, como os instruiu Wes. Wes não estava com eles, se separara
pouco antes para limpar a bagunça resultante da ultima luta, sozinho. Avisou que
os encontraria mais tarde. Os três cortes no rosto de Matheus quase paravam de
sangrar, e ele decidira não mais se preocupar. Sua roupa estava ensangüentada e
encharcada de suor. Seu braço estava dormente e sua espada descansava na bainha
em sua cintura.
-
porque estavam atrás de mim? – Nayara perguntou, após algum tempo.
Matheus
bufou de cansaço, mas então falou.
-
Só posso dizer o que acredito que sejam. Quero dizer, eu já topei com parecidos
antes. – ele buscou fundo em sua memória – mas até onde eu sei, eles não
sujavam as mãos assim, tão abertamente.
Nayara
o fitava com interesse.
-
quem? – perguntou, inquieta.
Ele
devolveu o olhar.
-
se auto-intitulam, ou se auto-intitulavam a Divisão. – ele pronunciou o nome
com certo desprezo. – surgiram há muito, muito tempo atrás. Eles chegaram e se
proclamaram os donos da historia. Embora soubéssemos que eles existiam, não
tínhamos idéia de quem eram.
Ele
silenciou, para que Nayara absorvesse as informações. E então continuou.
-
Eles eram como fantasmas. Em todos os lugares e ainda assim invisíveis para
nós. Nunca conseguimos enfrentá-los cara-a-cara, em todos longos anos que os
caçamos.
-
e o que houve com eles?
-
não se sabe. Talvez foram morrendo aos poucos, talvez batalharam entre si, se
separaram... Infinitas possibilidades... – balbuciou, pensativo. Então parou de
andar, e olhou para trás.
-
o que foi? – perguntou Nayara.
Ele
não respondeu de imediato. Praguejou baixinho, e então se virou para ela,
inconformado.
-
é isso. – exclamou ele – maldição, porque não nos demos conta antes?
Nayara
continuava sem entender. Matheus começou a falar rapidamente.
-
a resistência está se mobilizando, a Divisão voltou mais forte ainda, os quatro
irmãos se separaram, os portais estão abertos... – então ele levou as mãos à
testa e não disse mais nada.
Por
alguns segundos, ele ficou ali, parado, sendo observado pela jovem, sem fazer
qualquer movimento. Então Nayara fez menção de se aproximar, e ele finalmente
relaxou.
-
vai me dizer o que houve? – pediu ela, impaciente.
O
homem bufou lentamente antes de responder. Parecia que toda a tristeza do mundo
estava passando por seus olhos, quando ele os levou do chão até os olhos de
Nayara, calmamente.
-
você não entende? É uma corrida pelo poder! – disse ele, com um olhar vívido.
Nayara
se espantou com a expressão dele, até que ele gargalhou alto e recomeçou a
andar. Ela o acompanhou, vendo que faltava pouco para alcançarem o imenso
portão de madeira da entrada de Samantha. Mas ele andava rápido, e ela quase
precisava correr para acompanhá-lo.
-
o império está dividido, Andrei e Alexandro brigam entre si, - começou ele – a
resistência acredita que é a hora de atacar, atacar quando o inimigo está
enfraquecido. A divisão sabe que você, a herdeira legal do trono, está de volta.
Nayara
ficava em silencio, acompanhando o raciocínio de Matheus, embora a quantidade
de informações não fizesse sentido para ela. Ele notou a confusão dela.
-
estão todos atrás de uma parcela de poder. O Império está enfraquecendo cada
vez mais, ao passo que a resistência agora tem você. A Divisão veio atrás de
você para ter uma chance também. Faz todo o sentido. – agora ele falava com
certo pesar. – vão vir todos atrás de você agora, Nayara.
Eles
haviam chegado ao portão. Nayara parou para observá-lo, e suas extensões
laterais, cercas altas da madeira mais forte que havia. Impenetrável, como um
forte indígena.
O
que poderia estar esperando por ela após aquele escudo enorme de madeira? Se
aquele escudo não fora suficiente para protegê-la há pouco... Ela se imaginou
correndo dentro de um palácio, por longo tapete vermelho com espada brilhante
na mão, até que alcançava o trono e cravava a espada no rei malvado que ali
sentava. Ela se imaginou discursando para milhares de pessoas, seus súditos. E
também se imaginou caindo de um precipício para a escuridão que prosseguia
eternamente para baixo. Puxando-a. Clamando-a.
Matheus
havia lhe explicado corretamente, havia uma corrida pelo poder. Ela era a
garantia mais concreta desse poder. Viriam atrás dela então. E o que ela
deveria fazer?
Se
apenas ela pudesse voltar para casa, desejou por um segundo.
Mas,
porque a lembrança de sua mãe invadia seus pensamentos novamente, ela se
perguntou.
-
e se minha escolha fosse... Não fazer parte disso? – as palavras saíram para a
rua deserta àquela hora da noite. Ela fitou as estrelas do céu, esperando pela
resposta de Matheus.
Eles
cruzaram a pequena porta que havia no lado esquerdo do imenso portão, e não se
surpreenderam em encontrá-la destrancada. Do lado de fora, quase não havia luz,
apenas o resquício das luminárias no alto da muralha, mas não eram suficientes.
E
enquanto eles contornavam a imensa parede de madeira em direção a dois cavalos
marrons selados que se deliciavam com a grama presumivelmente verde do lado de
fora da cidade, a reposta de Matheus veio, não do jeito que esperava, mas calma
e peculiarmente amigável.
-
se é isso que deseja, é isso que deve fazer. – disse simples.
Ela
se surpreendeu.
-
serio? – perguntou - Você não iria entoar um discurso dizendo que eu sou a
única esperança de vocês, ou então ameaçar me entregar aos encapuzados?
Matheus se virou para ela,
mas no escuro Nayara não pode ver muito do rosto dele.
- Não sou seu pai, eu sou
seu amigo. – respondeu.
Então lhe deu as costas, e
alcançou os cavalos. Agilmente, montou em um, e olhou para ela.
- aquele é para você. –
gritou. – faça sua escolha.
E começou a cavalgar.
Nayara observou ele se
distanciar lentamente, cavalgando sob a luz cândida do luar que banhava toda a
planície a frente dela, até a linha do horizonte, que ficava atrás das
montanhas ao longe. O trotar do cavalo começou a se distanciar. Nayara olhou,
esperançosa, de volta para o portão de Samantha.
E então, chutando uma
pedra em seu caminho, correu para o ultimo cavalo.