domingo, 24 de abril de 2011

Chapter II - Nayara




O estrondo repentino de uma caneca batendo em uma mesa, seguido do burburinho de conversas chegou aos ouvidos da garota, que levantou a cabeça num susto. Estivera dormindo por tempo suficiente, e agora que despertara, deparou-se com uma cena incomum.

Seguindo o olhar ao longo da extensão mesa de madeira em que acordara debruçada, viu quando cerveja foi derrubada da caneca de um homem robusto, com barba e cabelos longos, que trajava uma veste a qual fez a garota piscar os olhos e ponderar se não estava dormindo ainda.

Nayara olhou para os lados e balançou a cabeça. Parecia que ainda estava sonhando.

Estava em uma taverna com paredes de pedra maciça, que refletiam a luz das velas que bruxuleavam e iluminavam fracamente o ambiente. Varias mesas postas em filas, bancos de madeira em cada lado, preenchidas por um povo que festejava. Em um canto, um balcão se postava, onde vários banquinhos eram ocupados por sujeitos mal-encarados. Todos de costas para ela, escondidos por suas capas negras, e com os cotovelos apoiados no balcão.

Paralisada pela surpresa, Nayara continuou a observar aquela cena por muito tempo até que se dera conta do quão diferente ela também estava. Trajada em vestes que jamais vira antes. Roupas brancas, panos esvoaçantes, uma faixa na cintura.

- Já eram horas de que acordastes, jovem. – disse uma voz de repente.

Nayara ergueu os olhos

Viu uma mulher corpulenta segurando uma bandeja com canecas de cerveja sorrindo. As bochechas da mulher eram rosadas e isso combinava com seus cabelos, encaracolados e vermelhos.

- Onde eu estou? – perguntou Nayara.

A mulher a olhou de cima a baixo, e levantou uma sobrancelha.

- Em minha pousada. A mais conhecida dessa pequenina cidade. – sua voz continha um falsete, de quem estranhava a pergunta, e de quem sentia prazer em dizer “a mais conhecida dessa pequenina cidade”.

Desta vez, Nayara foi quem ergueu a sobrancelha.

- Uma... Pousada? – repetiu ela. – como cheguei aqui?

A mulher balançou a cabeça.

- Não me recordo. Quando vi pela primeira vez, já estavas a dormir nesta mesa. – a expressão de Nayara murchou. – necessitas ajuda?

Nayara levou as mãos à cabeça, passando seus dedos entre seu longo cabelo negro. Não surtia efeito. Não conseguia relacionar nenhuma das informações da mulher com a sua vida e os acontecimentos do dia anterior.

Estava confusa.

- Está perdida? – perguntou novamente a mulher.

Levando as mãos à cintura, procurando por seu celular em seus bolsos, Nayara se deu conta de que não possuía mais bolsos.

- Onde posso encontrar um telefone? – perguntou Nayara, ignorando as outras perguntas.

A mulher deu de ombros.

- O que vem a ser um telefone, gracinha? – perguntou, sorrindo, tentando disfarçar que não sabia a resposta.

Nayara não compreendeu a duvida da mulher.

- Um telefone, ora! – disse, impaciente. Não tinha tempo para brincadeiras – sabe, aquela coisinha com números e bocais, que serve pra falar com pessoas de longe?

A expressão no rosto da mulher mudou de quem não havia entendido algo para a de que acreditava que Nayara estava delirando.

- Não existe tal coisa, minha querida. Jamais ouvi falar de tal objeto. – respondeu, sincera. – tens certeza de que está bem?

Nayara a encarou.

- Onde você disse que estamos? – perguntou, dessa vez preocupada.

A mulher olhou em volta e abanou os braços.

- Esta é Samantha, a cidade dos desesperados e deprimidos. Seja bem vinda!

Nayara seguiu seu olhar a sua volta.

Correndo seus olhos pelos muitos grandalhões que estavam sentados nas mesas, falando alto, Nayara percebeu uma coisa que não havia visto antes.

Estavam todos trajando armaduras. Sua visão, a princípio turva, melhorava, e ela pode ver que nas costas dos homens havia bainhas para espadas. No chão, ao lado dos muitos pares de botas pesadas, havia vários escudos arredondados postos de lado. Os elmos em suas cabeças completavam o conjunto de trajes.

Nayara não conseguia acreditar no que via.

Um sentimento de desespero começou a subir por sua espinha, e ela não agüentou. Levantou-se depressa, empurrou a mulher gorda para o lado, quase a fazendo derrubar a bandeja, e saiu correndo em direção a porta que vira. Os homens a seguiram com o olhar quando ela atravessou a porta de entrada. Ela o fez sem olhar para trás.

Seu coração batia acelerado.

Ouviu a porta bater atrás de si, e por isso queria correr tão depressa quanto podia, mas parou assim que sentiu a luz do sol e o ar puro. O lugar onde estava, a cidade onde acordara, não se parecia em nada com sua rua, sua cidade, onde dormira na noite anterior.

Casas e prédios feitos de pedra bruta, telhados de palha, carroças de madeira. Garotos brincando com arcos e flechas. Mulheres trajadas em vestidos sujos, homens guiando cavalos. Estradas de terra vermelha. O barulho de metal chocando em metal, quando dois homens encenavam um duelo de esgrima.

- Não... Não... Onde é que eu... É um sonho... Só pode ser... – Nayara falava consigo mesma. Estava quase enlouquecendo.

Esfregou os olhos e olhou em volta novamente, na esperança de que tudo sumisse, como se tudo fosse um sonho. Mas quando reabriu os olhos, estava tudo no mesmo lugar. Não conseguia entender.

Ela era uma garota bonita, seus olhos levemente puxados e castanhos. Seus cabelos eram longos e negros, e seu rosto mostrava a quem quisesse ver uma garota que vivia feliz com a vida. Naquele momento, porem, quem olhasse para ela não veria o sorriso que ela sempre ostentava, não importava a situação. Era quase medo que sentia.

- Ei, você! – uma voz trovejou em algum lugar. Nayara levantou a cabeça.

Um homem com um manto negro de capuz, que lhe cobria o rosto, vinha descendo a rua, na direção dela acompanhado de dois homens grandes vestindo armaduras e elmos cinza. Espadas longas nas mãos.

- Você mesma. – disse o homem de manto negro.

Em instantes, Nayara disparou correndo para o lado oposto dos guardas. Não estava nem um pouco a fim de conversar com eles.

Virando em uma rua que não conhecia, ainda correndo, Nayara tentava distinguir as varias construções pelas quais passava, para encontrar um lugar para se esconder.

Então ela viu.

Uma torre de uma igreja se erguia no fim da rua em que estava agora.

Feita de pedras cinza, janelas e porta marrons, uma cruz no topo da torre que refletia o sol a quilômetros. Havia um homem parado na frente da igreja, com vestes pretas e um colete azul, segurando um bastão. Sorria e cumprimentava as pessoas que passavam.

Olhando para trás, ela viu que os homens que a perseguiam não haviam chegado naquela rua. Então acelerou o passo, e chegou aos primeiros degraus da escadaria da igreja.

- bom dia, minha cara – cumprimentou o homem, que ela percebeu ser de idade mais avançada – seja bem vinda ao templo de Zurvan.

Nayara parou a frente dele, ofegante.

Dois olhos azuis a encararam por cima de um nariz curvo, como uma águia. Um sorriso foi se formando onde ela podia distinguir a boca dele no meio da barba grisalha dele. Não tinha certeza do que deveria chamá-lo.

- Padre...? – tentou – bispo...? – o velho sorriu.

- Sou um sacerdote, filha. – respondeu ainda sorrindo.

- Sacerdote, - repetiu ela – preciso de ajuda. Abrigo, pra falar a verdade.

O velho a olhou de cima a baixo, preocupado.

- Você não é daqui, não é? – Nayara confirmou, ainda ofegante – Pois bem, ajuda é o que se encontra aqui. Vamos, entre.

Ele a levou até a porta da igreja, a abriu e entrou. Nayara olhou por cima do ombro novamente, para ver se estavam por perto, mas logo o acompanhou. Dentro da igreja, Nayara seguiu o sacerdote, que andava entre as filas de bancos. A barra do seu manto azul arrastando pelo chão de mármore brilhante.

Ela mantinha os olhos nas costas do sacerdote, enquanto caminhavam. Queria ter certeza de que estava segura. O sacerdote, porem, estava bastante tranqüilo e, ela pode ver, até sorria de vez em quando. Ela o seguiu até o altar, e então para uma porta a lateral dele, que dava em uma pequena sala com moveis e uma lareira. Ele se sentou em uma cadeira almofadada, e fez sinal para ela se sentar em outra a sua frente. Sua respiração voltava ao normal. Ficaram olhando um para o outro, até que ele falou.

- Então, do que você está fugindo? – disse, com um sorriso.

Nayara olhou para os lados, como se pensasse que alguém estivera à escuta.

- Eu não conheço. – ela respondeu baixinho.

Ele se arqueou na cadeira. Nayara pode ver os olhos azuis dele se iluminarem.

- Onde eu estou? – perguntou ela, assustada.

- Esta é uma casa sagrada. O templo de Zurvan, nosso mais generoso deus. – disse, alegre. – aqui, nenhum mal lhe será feito.

- Mas que cidade é essa? Que lugar é esse? – ela levantou as perguntas apressada.

O sacerdote olhou para ela, perfurando-a com olhos firmes. Ela se sentiu intimidada e desviou o olhar. “Pam”. O estrondo desviou a atenção deles. O sacerdote franziu uma sobrancelha. “Pam”

- Volto logo. – disse ele, saindo da sala.

Nayara continuou sentada por instantes. Examinou melhor a sala onde estava. Era uma sala comum, com prateleiras e quadros, mas ela não reconheceu nenhum deles. O silencio em que estava foi quebrado por um urro. Nayara reconheceu como pertencendo ao sacerdote. Saiu da sala correndo, apenas para presenciar uma visão terrível.

Os guardas e o homem de casaco preto que a perseguiam estavam agora dentro da igreja. Haviam encontrado-a afinal, ela concluiu.

O sacerdote estava imóvel, tendo a espada de um dos homens de armadura contra sua garganta. Ele viu pelo canto do olho quando Nayara chegou.

- Olá, minha cara. – disse o homem de capuz, no momento em que pôs os olhos nela.

A jovem paralisou.

Olhou para o sacerdote, e para a afiada lamina pressionada contra sua garganta. Nem ao menos sabia o nome dele, pensou. Voltou seu olhar para o homem de capuz, tentando ver seu rosto por baixo dele.

- Quem é você? – ela perguntou, numa tentativa de ganhar tempo – o que você quer comigo?

- Você... – o homem falou – é a resposta para tudo.

Nayara ficou na mesma. Continuou encarando-o. Estava, porém, assustada. A resposta não fazia sentido algum. Tal incoerência era o que mais lhe metia medo. Estava em um lugar desconhecido, e a primeira vista, em perigo também.

- E eu... – continuou ele – sou aquele que vai responder a tudo.

Então o homem puxou o capuz para trás, deixando a mostra seu rosto.

- Talvez não a tudo, mas ao bastante para você – completou, sorrindo amarelo.

Os olhos castanhos, como seus cabelos, iluminado pela fraca luz das velas. Suas sobrancelhas arqueadas, a expressão de alivio e ódio mesclada juntas. A boca aberta em um sorriso de satisfação e ainda assim, um pouco de medo. O homem abaixou a cabeça, e logo fez o mesmo com seu corpo inteiro.

Estava se ajoelhando.

- O nome é Getulio, Alteza. – disse ele – tens de vir comigo.

Silêncio...

- A deixe em paz, homem! – ordenou o sacerdote de sua posição cativa.

Getulio se levantou lentamente. Um breve aceno com a cabeça para aquele que segurava uma espada na garganta do sacerdote. O homem entendera. Levantou o braço com a espada, bradando alto e...

... Fora jogado longe.

Um segundo depois, o outro homem de armadura também era arremessado para trás, descrevendo um arco no ar, caindo desacordado ao lado do companheiro.

Nayara não acreditava no que via.

O sacerdote tinha o braço estendido. Olhava com fúria para os dois homens caídos. Na palma de sua mão, uma luz ia se dissipando, até que desapareceu por completa. Getulio fitou rapidamente os corpos caídos, então estendeu sua mão na direção do velho ao mesmo tempo em que ele se virava com o olhar furioso.

Um clarão tomou conta do ambiente. Nayara se jogou para o lado. Um estrondo alto irrompeu. Um grito em algum lugar... Então o silencio.

Ela se levantou e protegeu a boca com a mão por causa da poeira que fora levantada. Olhou para os lados a procura de uma alma viva. Então ouviu os passos ecoando, e do meio da poeira saiu o ancião. Ela paralisou muito surpresa pela repentina descoberta, e também porque não fazia idéia das intenções dele.

Ele a encarou, então acenou com a mão e toda a poeira desapareceu.

- Nayara, fique calma... – começou ele.

- Como você sabe meu nome? – ela explodiu em raiva e medo – quem é você?

Ele a fitou com ternura nos olhos, suspirando fracamente. Isso não a acalmou.

- Responda! – ela gritou. Ele encarou o chão, então olhou para os corpos atrás dele, e finalmente disse.

- Eu sou Matheus. – respondeu, indiferente.

Ela continuou encarando-o. O vento soprou mais forte. Isso, de alguma maneira, a impulsionou. Ela explodiu, mais uma vez, em agonia. Estava queimando por dentro. Queria respostas, e não pode mais agüentar.

- Onde eu estou? Que lugar é esse e que pessoas são essas? – disse, aos gritos, apontando para o corpo inerte de Getulio ao chão. – O que vocês querem comigo?

Matheus a encarou, então começou a andar. Passou por ela e sentou-se em um banco de madeira próximo. Ela bufava em silencio, tentando fazer a respiração voltar ao normal.

Girando os polegares, Matheus fez sinal para ela se sentar também.

- Por favor – indicou com a cabeça o banco a sua frente.

Contrariada, ela se sentou. Fitou os olhos azuis do homem cujo nome disse ser Matheus, e esperou. Para ele, o momento mais esperado havia chegado. Era hora da verdade. O inicio de tudo. O inicio da ultima esperança.

- Há muito que você precisa saber. Preste atenção, eu vou lhe contar uma historia...

“... Como nenhuma outra que já ouviu...“





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